AUTOBIOGRAFIA DA BEATA MARIA DO DIVINO CORAÇÃO RELIGIOSA DO BOM PASTOR CONGREGAÇÃO DE NOSSA SENHORA DA CARIDADE DO BOM PASTOR LISBOA  

Postado dia 15/06/2020

 

 

INTRODUÇÃO

A Igreja reconheceu a heroicidade das virtudes da Irmã Maria do Divino Coração Droste zu Vischering, religiosa do Bom Pastor e superiora da casa que aquela Congregação teve na cidade do Porto, beatificando-a faz agora dezoito anos, dia 1º de Novembro de 1975. Ela morrera a 8 de Junho de 1899, com trinta e seis anos de idade; e tão intensamente viveu o baptismo que a fez cristã e a radicalidade evangélica da profissão que a fez religiosa consagrada, que, para empregarmos a expressão bíblica, “em tão curta existência realizou o programa duma vida longa”.

E nem aos Anjos espanta

Chamar-lhe o mundo beata,

Quando em si mesma era santa.

(como, a propósito doutro fenômeno de santidade, poetou Antônio Correia de Oliveira).

De naturalidade alemã, trouxe-a a Portugal a Providência, nas asas da Obediência religiosa. E antes que na pátria onde nasceu, brilhou nesta adoptiva onde morreu luz acesa no candelabro da imprensa, mal passado um mês sobre a data da sua chegada à pátria verdadeira dos eleitos.

Efetivamente é de assinalar o fato, nesta nossa terra sempre morosa em se dar conta e assinalar devidamente os valores que a honram e dignificam. É de assinalar que, muito antes de o Padre Luís Chasle sair a público com a primeira biografia da por ele chamada “Gertrudes do século XIX”, já entre nós circulava a autobiografia da grande Serva de Deus.

Reconstituamos esta pequena história editorial.

 

I-1899

(Jornal religioso “A PALAVRA”, Porto, 11 a 30 de Julho)

 

O Padre Teotónio Manuel Ribeiro Vieira de Castro, vice-reitor do seminário do Porto, tinha sido confessor da recentemente falecida Irmã Maria. Em vésperas de ser nomeado bispo de Meliapor, nas terras do Padroado Português do Oriente, resolveu publicar no jornal católico de José Frutuoso da Fonseca as notas autobiográficas que tinha tido a feliz inspiração de pedir à santa superiora do Bom Pastor; e como Deus a chamara antes de as ter podido concluir, o zeloso e ilustrado sacerdote achou que podia de algum modo completá-las com cartas que da mesma recebera, mantendo, portanto, o mesmo carácter autobiográfico.

A preceder esta autobiografia, em artigo de fundo de “A Palavra” de 11 de Julho, o Padre Teotónio dava as seguintes explicações, que reproduzimos na íntegra:

“Fez ontem um mês que desceu à sepultura o venerando corpo da Superiora do Recolhimento do Bom Pastor do Porto, Soror Maria do Divino Coração, condessa Droste Vischering. Nasceu a 8 de Setembro de 1863, tendo, portanto, à sua morte, 36 anos de idade incompletos.

Pode afirmar-se sem receio de ilusão que a finada era, na ordem psíquica, um desses vultos gigantescos, que de raro aparecem no correr das gerações.

Tudo nela era superior e extraordinário, como reconhecem todos, principalmente os que tiveram a ventura de tratá-la de perto.

Parece realmente que a Divina Providência quis reunir nesta santa religiosa os dotes mais distintos, quer na ordem natural quer na sobrenatural.

O seu porte era soberano e airoso, sem nada de altivo ou afetado. Uma beleza angélica iluminava-lhe a fronte. Corria-lhe nas veias o sangue de uma das mais nobres e opulentas famílias da Alemanha, na Westfália; seu Pai e tios ocupam lugares proeminentes no parlamento alemão, e outros tios ou parentes próximos são ornamentos do Episcopado.

Inteligência muito robusta e muito lúcida percebia de pronto o seu interlocutor, e por vezes até adivinhava o que ele lhe ocultava; parecia profunda em quase todos os ramos dos conhecimentos humanos, sendo-lhe igualmente fácil dissertar, v. gr. Sobre teologia ou sobre educação, compor música ou ensinar lavores, falar várias línguas vivas ou entender perfeitamente o latim.

Coração generoso e grande, aberto a todas as compaixões quer de casa quer de fora, sabendo dar como ninguém o bálsamo da paz e da consolação, ou inspirar o conforto da esperança e da resignação, carácter enérgico e firme, índole bondosa e meiga, aliando muito bem os atributos de mãe e os de soberana, excepcional tino prático na arte de governar e de administrar, educação finíssima, sincera e puríssima na sua dedicação, tudo isso era a Superiora do Bom Pastor.

Naturalmente, tal conjunto de dotes superiores exercia uma atração ou fascinação de veneração e respeito, mesmo sobre aqueles que pela primeira vez a viam.

Por muitas vezes, e a diversas pessoas de diferentes categorias sociais, eu ouvi dizer: “Nunca vi uma senhora assim”.

O Senhor Cardeal D. Américo, que Deus haja, disse-me também um dia: “A Superiora do Bom Pastor é uma verdadeira princesa, e é uma santa: respeito-a e estimo-a muito”.

E assim se explica que, contra o seu costume em casos semelhantes, Sua Eminência a foi visitar durante a doença, e mandava assiduamente ao Bom Pastor, quando a enferma piorava, pedir notícias dela.

Um titular muito respeitável, Par do Reino e que já foi Ministro de Estado, dizia há tempos, referindo-se a ela: “Eu quando me vejo diante daquela senhora, sinto-me pequeno”.

Ainda não há um ano, mandou ela dizer a uma Autoridade civil superior que lhe precisava falar. Esse alto funcionário foi ao Bom Pastor, e tencionando demorar-se apenas alguns minutos, ficou de tal modo cativado que se demorou quase duas horas conferenciando com a doente, e até sobre a solução prática que se devia dar, sob o ponto de vista econômico, a assuntos de utilidade pública.

Assim sucedia com todos: o poder sugestivo da influência pessoal da humilde Superiora subjugava docemente.

O segredo, porém, deste irresistível condão e a explicação do realce de muitos daqueles dotes naturais – está em que na falecida Superiora do Bom Pastor tudo isso era apenas o efeito e o revérbero, mas pálido, da beleza sobrenatural, da vida sobrenatural que desde a adolescência lhe dourava a existência.

E eu que, graças à Bondade Infinita, tive a ventura de conhecer todos ou quase todos os arcanos íntimos daquela alma privilegiada, e de, durante três anos, observar a acção directa de Deus sobre ela; e que, contra meus méritos, devo à finada tantas provas de dedicação e confiança – cumpro um grato dever, ditado pela consciência e pelo coração, descobrindo, para glória de Deus e exemplo salutar de alguns leitores, a ponta do véu que escondia aquele segredo.

Não serei eu, porém, quem irá revelar essas prendas do amor e da bondade divina, que se esconderam largos anos na modéstia e profunda humildade da veneranda Religiosa do Bom Pastor. Será ela mesmo que no-las irá manifestar.

Há cerca de três meses, impressionado com um extraordinário fato sobrenatural, disse à finada que, para melhor eu saber dirigir a sua alma, e também para afervorar o meu espírito na confiança e gratidão para com o Sagrado Coração de Jesus, desejava que ela me descrevesse as graças que se lembrasse haver recebido do Divino Coração, e tudo o que se passara em sua vida relativamente a Ele.

A 5 de Maio próximo passado, primeira sexta-feira do mês e dia em que a sua doença mortal se agravou, mandou-me ela dois cadernos escritos a lápis por seu punho e terminados naquele dia, que são como que uma autobiografia que vai desde a sua infância até a profissão religiosa, 29 de Janeiro de 1891. Prometia-me – o que a morte não deixou – completar os seus apontamentos noutro caderno, que iria desde 1891 a 1899, período principal da sua vida sobrenatural.

São aqueles apontamentos, e bem assim algumas cartas particulares que dela conservo que nos irão desvendar as graças singulares divinamente depositadas naquela alma e revelar os quilates da sua exímia virtude e santidade.

Não posso querer possuir só para bem da minha alma esse tesouro; mas desejo que ele, tornando-se conhecido, vá enriquecer outras almas, que deles possam tirar melhores frutos.

O leitor não deixará de sentir-se melhor e muito edificado, lendo alguns desses trechos, que rescendem a fragrância de imensa candura e simplicidade.

Nunca ela imaginou que alguém mais do que eu viesse a ter conhecimento destes apontamentos, e por isso me pediu que os guardasse bem; mas aquela alma tão inflamada no amor de Deus e tão obediente aos meus conselhos, conhecendo, lá no Paraíso, onde já está o santo fim com que público parte deles, aprovará sem dúvida o meu proceder.”

“Parte deles”, diz o Padre Teotônio. E no jornal do dia seguinte, 12 de Julho, o ilustre sacerdote continuava:

“Conforme ontem prometi, começarei hoje a publicar alguns trechos dos apontamentos que esta santa religiosa a meu pedido escreveu pouco antes da sua morte, e nos quais se revelam os quilates da sua elevada virtude adquirida na escola divina do Sagrado Coração de Jesus. Conservar-lhes-ei fielmente a sintaxe e ortografia com que a finada os escreveu.”

“Alguns trechos”, diz. E de fato não publica na íntegra o manuscrito autobiográfico com que a santa religiosa o brindara. O mais longo trecho omitido é o do princípio, que ele resume assim:

“Depois de ter escrito com encanto as devoções e as inocentes travessuras da sua infância, e bem assim alguns exemplos edificantes da sua família e a fervorosa piedade de seus pais para com o Sagrado Coração de Jesus, continua ela: ‘Em seguida, em 1879… ’, etc.”

E em números sucessivos vai publicando os dois cadernos autobiográficos, até ao fim dos mesmos.

Publica, depois, oito ou nove cartas (da cerca de meia centena que a Irmã Maria lhe escreveu), supletórias da parte não escrita da autobiografia. Essa publicação começa a 22 de Julho, sob o título: Cartas da Superiora do Bom Pastor, Maria do Divino Coração, com a seguinte abertura, da autoria da Direção do jornal:

“Vamos começar a publicar algumas cartas que a Sr.ª Superiora do Bom Pastor, Maria do Divino Coração, há pouco falecida, dirigiu ao seu confessor, o Exmº e Revmº Sr. D. Teotônio, Bispo de Meliapor.”

Percebe-se que a nomeação episcopal do antigo confessor da Serva de Deus ocorrera por aqueles dias. As cartas publicadas são as seguintes:

De 19.11.1896                          23.6.1897

      20.11.1896                          25.6.1897 

      21.11.1896                          10.7.1897

      13.12.1896                          13.7.1897  

                                                  23.7.1897 (com o post-scriptum “Depois da Comunhão”)

 

II-1902

(A Religiosa do “Bom Pastor” Condessa de Droste Vischering – publicação das Oficinas de S. José de Lisboa – Lisboa, Typografia de Christóvão Augusto Rodrigues, 60, R. de S. Paulo, 62 – 19020.

Opúsculo in – 8º de VI – 61 – 48 páginas.

É uma espécie de separata da anterior publicação fragmentada, com Duas palavras de apresentação não assinadas.

 

III-1903

(Cartas de Soror Maria do Divino Coração Droste Zu Vischering ao Vice-Reitor do Seminário do Porto, 1896-1899).

Opúsculo in-fol. de 96 páginas. Na capa, em vez da indicação do editor, vem o seguinte parêntese: (Publicação para uso particular). Mas na contracapa vê-se uma vinheta minúscula, em que se pode ler: ADDISON AND Cº/FINE COLOR & GENERAL PRINTERS/MADRAS.

Não tem frontispício. A data colige-se da licença no verso da capa: Imprimi potest. Meliapor, 25º Martii, 1903. Theotonius, Episcopus Meliaporensis.

Começa por um conjunto de 51 cartas, publicadas na íntegra, numeradas de I a LI, ocupando as páginas 1 a 64; a primeira é datada de 30.5.1896, e a última de 15.5.1899. A pág. 65 começa a Autobiografia a que se refere à carta supra de 4 de Maio de 1899 (Dividida em dois cadernos), terminando a p.96.

 

IV-1929

(Irmã Maria do Divino Coração – Sua Autobiografia e Cartas)

Opúsculo in-8º de X-118 págs. Em indicação de editor nem tipografia, a data colige-se do imprimatur do Vigário Geral do Patriarcado de Lisboa, que é de 10 de Junho de 1929.

Abre com Duas palavras prévias, não assinadas, mas que achamos interessantes e vamos reproduzir:

Devoção ao Sagrado Coração de Jesus em Portugal.

Em 1585, o célebre Padre José de Anchieta, ao serviço de Portugal, edificava no atual Estado Brasileiro do Espírito Santo a primeira Igreja do mundo dedicada ao Sagrado Coração de Jesus.

Este fato, quase desconhecido e tão honroso para Portugal, divulgamo-lo aqui com verdadeira satisfação, e o seu conhecimento encherá certamente de santo e patriótico júbilo o peito de todos os bons portugueses.

Note-se bem: aquela Igreja portuguesa foi levantada para honrar o Divino Coração noventa anos antes da revelação em que Jesus encarregou Santa Margarida Maria de conseguir que a Igreja estabelecesse uma Festa para honrar o mesmo Seu adorável Coração.

A pedido da Rainha D. Maria I, o Papa Pio VI concedeu que em Portugal e seus domínios se celebrasse, com rito dúplex de 1ª classe, ofício e missa própria, a festividade do SSmo. Coração de Jesus, na primeira sexta-feira seguinte à oitava do Corpo de Deus, sendo esse dia santificado e precedido de vigília e jejum. Em 1783 inaugurava-se em Lisboa a Basílica da Estrela, a primeira Igreja erguida em honra do Divino Coração depois da grande revelação. Passava-se isto quase um século antes do Santo Padre Pio IX estender, em 1856, à Igreja Universal, com rito dúplex maior, a Festa do Sagrado Coração. Já em 1772, uma das freguesias de Lisboa (a atual freguesia do Coração de Jesus) havia sido consagrada ao SS. Coração do Redentor.

Durante os anos da tormenta revolucionária de 1910, os católicos portugueses, que o Apostolado da Oração havia afervorado muito na sua tradicional devoção ao SS. Coração de Jesus mantiveram-se firmes nela. Continuou a haver as Comunhões Gerais das primeiras sextas-feiras e a celebrar-se o Mês de Junho nas nossas igrejas. O Rev. Padre Matéo Crawley, quando em 1928 veio pregar-nos o Reinado Social do Coração de Jesus, encontrou assim os corações portugueses bem preparados pra receberem a bendita semente do seu apostolado, e pôde, ao sair de Lisboa, exclamar comovidamente na despedida: – Viva Portugal, trono glorioso de Cristo Rei!

Assim como, de todos os países do mundo, era Portugal que contava o maior número de associados no Apostolado da Oração, assim é também Portugal que conta o maior número de inscritos na obra mateísta da Adoração Noturna. São mais de 10.000 esses portugueses, amigos dedicadíssimos do Coração de Jesus, que compõem 1.400 grupos de adoradores noturnos. Estes dados são extraídos da recente circular do Rev. Padre Crawley aos Secretariados da Entronização e aos adoradores noturnos do lar.

O ano de 1928, que a missão do Padre Matéo e a Consagração oficial de Portugal ao Sagrado Coração de Jesus em 28 de Outubro, por determinação do venerando Episcopado Português, duplamente notabilizaram, também deixará nestas páginas memória indelével. Com efeito, nesse mesmo ano, por especial concessão, Sua Exª Revmª o Senhor Bispo de Meliapor, D. Teotônio, cujo sagrado anel beijamos respeitosamente, gratíssimos pela mercê, autorizou-nos a publicar a autobiografia da Irmã Maria do Divino Coração Droste zu Vischering, precioso documento que reproduzimos sem sequer lhe alterar a ortografia, e bem assim algumas das cartas da serva de Deus.

Todos sabem que essa santa Religiosa, natural da Alemanha e Superiora da casa da sua Congregação no Porto, foi quem, por ordem do próprio Senhor Jesus, instantemente pediu ao Papa Leão XIII que consagrasse a humanidade inteira ao Seu Sagrado Coração, sendo realizado pelo mesmo imortal Pontífice o acto soleníssimo da Consagração em 11 de Junho de 1899.

Grande glória é para Portugal ter sido escolhida a Superiora do Bom Pastor do Porto para discípula bem-amada do Divino Coração do Redentor, e transmissora da vontade divina. Quanto não interessará aos fidelíssimos portugueses, tão particularmente favorecidos pelo amabilíssimo Jesus, a autobiografia e cartas admiráveis da vidente, portuguesa pelo coração, coluna de santidade, e que tanto amou o Sagrado Coração de Jesus! Aqui lhas entregamos, para sua leitura e edificação.

Segue-se um “pequeno artigo”, intitulado: A Irmã Maria do Divino Coração, da autoria de D. Teotônio, e datado de Cucujães, Colégio das Missões Ultramarinas, 26 de Maio de 1929. Aqui o reproduzimos também:

A 8 de Junho de 1899, às 3 horas da tarde, véspera da festa do SS. Coração de Jesus, e ao soar a hora em que se iniciava o solene Tríduo prescrito por Leão XIII para a Consagração do Gênero Humano ao mesmo Sagrado Coração – faleceu no Porto, em fama de santidade, com 36 anos de idade, a Irmã Maria do Divino Coração Droste zu Vischering, Superiora do Recolhimento do Bom Pastor.

Oriunda de uma nobilíssima família alemã, muito católica, da Westfália, dotada de uma inteligência superior, dum critério muito judicioso e duma variadíssima instrução, aliava a estes dotes naturais as prendas sobrenaturais das mais eminentes virtudes que maravilhavam e edificavam as numerosíssimas pessoas de todas as condições sociais que a conheceram durante os cinco anos de sua permanência em Portugal.

No ano seguinte à morte desta Serva de Deus, escrevia o distinto médico portuense Dr. José Carlos Godinho de Faria: “Durante os anos que Maria do Divino Coração viveu no Porto, tive ocasião de estudar e admirar a elevação do seu espírito e suas extraordinárias virtudes. Só vivia para Deus e para os infelizes, sendo sempre a mais completa personificação da abnegação e da caridade. Oferecia ou procurava remédio pra todos os males… Atrozmente atormentada por uma mielite que lhe tirava o apetite, o sono, o movimento e as forças, dizia com um sorriso inefável: Estou muito contente, porque Deus assim o quer! Tenho cinqüenta e seis anos de idade e trinta e quatro de clínica. Durante este período de tempo, tenho vivido com pobres e ricos, no meio de todas as classes sociais, em contacto com todos os vícios e virtudes, e jamais encontrei alguém que se possa aproximar de Maria do Divino Coração Droste Vischering. A Igreja há de glorificar este nome e perpetuá-lo para exemplo e edificação das gerações presentes e futuras.”

Essas eminentes virtudes da Irmã Maria do Divino Coração foram, sobretudo um insaciável zelo pela salvação das almas, um grande anelo de sofrer por amor de Jesus Cristo, uma devoção muito fervorosa ao SS. Coração de Jesus, e uma constante e alegre paciência no meio dos atrozes sofrimentos que a tiveram crucificada no leito nos últimos três anos de sua vida. E por isso é por muitos considerada uma Santa; o seu esclarecido biógrafo Rev. Padre Chasle chama-lhe a Santa Gertrudes do século XIX, e o próprio Sumo Pontífice Leão XIII, ao receber em audiência, em 1900, o Conde Droste, disse, pondo-lhe a mão sobre a cabeça: Voilà Le père d’une Sainte!

Aprouve também ao Senhor enriquecê-la com dons extraordinários, alguns dos quais foram comunicações que se afiguram sobrenaturais, e que, juntamente com as preclaras virtudes que ela manifestou, colocam a Irmã Maria do Divino Coração entre as mais privilegiadas Esposas e Confidentes do Divino Coração de Jesus nos últimos séculos.

Entre estes extraordinários favores celestes, sobressai o altíssimo encargo de ela pedir ao Soberano Pontífice em nome de Jesus Cristo a consagração de todo o Gênero Humano, tantos fiéis como infiéis, ao Santíssimo Coração.

A nação portuguesa deve, portanto, rejubilar e dar fervorosas graças a Deus por haver partido de Portugal a iniciativa para o Sumo Pontífice leão XIII realizar este acto sublime, que ele próprio declarou ser o maior do seu pontificado.

Foi isso sem dúvida uma especial graça e uma grande honra concedida por Deus a Portugal.

Devemos igualmente ser muito gratos ao Senhor por a nossa pátria possuir os restos mortais dessa confidente e mensageira do Sagrado Coração, a qual Deus, em Seus imperscrutáveis desígnios, quis que fosse o principal instrumento para se realizar essa Consagração, princípio e fonte de imensas misericórdias e bênçãos celestes, não somente sobre Portugal e as outras nações católicas mas também sobre todos os povos da terra.

Peçamos ao Senhor que, se é para Sua glória e salvação das almas. Se digne conceder que a Santa Igreja glorifique a Sua fiel Serva com a auréola dos Bem-aventurados.

Vem depois A Autobiografia, com a seguinte explicação introdutória:

Esta interessantíssima, atraente e edificante história da vida da Irmã Maria do Divino Coração, escrita por ela mesma, teve a seguinte origem:

Em Fevereiro de 1899, o confessor da Irmã Maria do Divino Coração teve conhecimento de que o sapientíssimo Pontífice Leão XIII, profundamente impressionado com as cartas que dela recebera em que lhe pedia em nome de Deus que consagrasse todo o Gênero Humano ao SS. Coração de Jesus resolvera colher informações sobre a signatária dessas cartas. Vendo por isso o mencionado confessor que ao próprio Soberano Pontífice merecia especial atenção a pessoa da Serva de Deus, teve o pensamento de que seria oportuno e prudente coligir materiais para, depois da morte dela, se poder escrever a sua vida.

Disse, portanto, à Irmã Maria que, como ela tinha recebido muitas graças do SS. Coração de Jesus durante toda a vida desejava que ela as escrevesse quando pudesse, a fim de que ele, ao ler essa narração, se afervorasse mais na devoção ao mesmo Divino Coração; e acrescentou que ela, descrevendo essas graças e favores recebidos, como que ofereceria um bouquet ao Sagrado Coração.

A Serva de Deus, não suspeitando da principal razão por que ele lhe pedia isso, e julgando que o que escrevesse era para ser lido somente pelo confessor, foi pouco a pouco escrevendo em português, a lápis, no seu leito de dor, dois grandes cadernos, de cerca 25 páginas cada um, em que, com encantadora candura e singeleza, narra muitos factos da sua vida, alguns dos quais eram segredos íntimos da sua alma, factos ocorridos desde o seu nascimento (8 de Setembro de 1863) até as vésperas da sua profissão religiosa (Novembro de 1890).

Eram acompanhados esses cadernos da edificante carta seguinte:

Como amanhã (5 de Maio de 1899) é a primeira sexta-feira do mês envio-lhe a primeira parte dos apontamentos que por ordem de V.ª Rev.ª fiz, para V.ª Rev.ª os oferecer do Divino Coração de Jesus, como prova da minha gratidão e do meu amor; e Ele se digne aceitar aquela oferta com a Infinita Misericórdia com que sempre me tratou. Confio nesses cadernos os meus mais íntimos segredos ao meu padre espiritual, que bem sabe quanto eu sou miserável e indigna de tantos favores da parte do meu Divino Esposo.

Sinto-me profundamente confundida à vista de tantas graças, e só as dou a conhecer a V.ª Rev.ª para que V.ª Rev.ª agradeça em meu nome ao S.mo Coração de Jesus tanta misericórdia e bondade. Custou-me ter de escrever tudo aquilo, mas se N. Senhor, na sua grande misericórdia se quer servir d’estas comunicações a V.ª Rev.ª para talvez afervorar mais um pouco a sua devoção ao seu Divino Coração estão bem recompensados a mortificação e o trabalho.

São essas narrativas, aquilo que nós hoje chamamos a autobiografia da Irmã Maria do Divino Coração. “A beleza e a vivacidade de sentimentos faz desta autobiografia, na frase do ilustre biógrafo da Serva de Deus, o Revº Padre Chasle, uma obra poética, e ao mesmo uma mina opulenta de piedosas e sólidas meditações.” A sua autora tencionava completá-la narrando as extraordinárias graças recebidas durante o resto da sua vida, e por isso dizia na sua carta que enviava a “primeira parte dos apontamentos”; mas o agravamento da sua doença e a morte ocorrida passado apenas um mês, não a deixaram realizar esse seu plano. Todavia completa em grande parte essa lacuna as cartas, cerce de 50, que ela tinha escrito ao confessor durante os três últimos anos da sua vida, e que providencialmente ele tinha conservado, parte das quais adiante publicamos.

E começa a publicação dos cadernos autobiográficos, com a vantagem de o fazer na íntegra, o que não acontecera nas edições I e II. O primeiro caderno vai de 8 de Setembro de 1863 a 21 de Novembro de 1886; o segundo, de 21 de Novembro de 1886 a 29 de Janeiro de 1891.

Quanto às Cartas, insere, além das já publicadas, excertos de mais as seguintes:

16.5.1897                                  1.11.1898

5.6.1897                                    20.11.1898

23.6.1897                                  2.12.1898

17.8.1897                                  7.12.1898

15.8.1897(sic)                           8.12.1898

29.10.1897                                1.1.1899

6.1.1898                                    9.2.1899

26.2.1898                                  17.2.1899

7.4.1898                                    26.3.1899

13.6.1898                                  25.3.1899

5.8.1898                                    30.3.1899

31.8.1898                                  4.5.1899(atrás publicada)

                                                  15.5.1899

E o opúsculo termina por um estudo bastante completo sobre A Consagração do mundo feita pelo Papa a pedido da Irmã Maria do Divino Coração, a Morte da Serva de Deus, e um apêndice de Graças obtidas por intercessão da Madre Maria do Divino Coração.

Tivemos acesso e obtivemos fotocópias do original dos dois cadernos autobiográficos, autógrafos da B. Maria do Divino Coração. E vamos reproduzi-los com a maior exatidão que nos for possível.

A Irmã Maria escreveu aquelas notas em português que sabia e na ortografia do tempo. Pensamos, atendendo ao leitor de quase um século depois, retocar certas expressões e atualizar a escrita.

O mesmo critério seguiremos na publicação das cartas autobiográficas, com que se procurou completar os dois cadernos que a Bem-aventurada, sobretudo ao seu diretor espiritual, Dom Abade Herwegen; delas existe no citado Arquivo uma tradução francesa inédita. Mas não as selecionaremos aqui, para manter a unidade da publicação: uma vez que os cadernos são dirigidos a D. Teotônio, apenas mantemos também cartas a ele dirigidas.

 

 

AUTOBIOGRAFIA

DA BEATA MARIA DO DIVINO CORAÇÃO

DROSTE ZU VISCHERING

 

 

I

8 DE SETEMBRO DE 1863 – 21 DE NOVEMBRO DE 1886

 

“Como V.ª Rev.ª me deu ordem para eu escrever tudo o que me lembrava das graças recebidas do Santíssimo Coração de Jesus e tudo o que se passou na minha vida em relação com Ele, vou principiar este trabalho, embora muito me custe, em espírito de obediência e para assim, como V.ª Rev.ª me dizia, oferecer um bouquet ao Divino Coração de Jesus. Porém, antes de mais nada, deixe-me dizer-lhe quanto me sinto confundida à vista de tantas graças e favores da parte de Nosso Senhor e de tantos pecados e ingratidões da minha parte. Quanto mais contemplo as misericórdias de Nosso Senhor, tanto mais conheço o abismo da minha miséria. E como V.ª Rev.ª diz que quer que eu lhe escreva esta história para afervorar a sua devoção ao Santíssimo Coração de Jesus, só o fato de Ele escolher um pobre nada, uma miserável criatura e pecadora, como eu sou, por esposa do Seu Coração, é bastante para lhe mostrar quanto Ele é bom, misericordioso e digno de ser amado. Pomos, pois n’Ele toda a nossa confiança.

Nasci em Munster no dia 8 de Setembro de 1863, eu e o meu irmão gêmeo Max. Minha mãe disse que nessa ocasião sentiu uma consolação tão grande, que esse dia foi para ela um dos mais felizes da sua vida. Disse ainda que não se tratava de uma consolação natural, como a que uma mãe sente ao nascer um Filho, mas que foi uma coisa muito diferente. Minha mãe contou-me isto quando aqui esteve em 1896. O primeiro favor que recebi de Nosso Senhor foi o de ser batizada imediatamente, por estar em perigo de vida. Quem me batizou foi o médico, o chefe dos mações em Munster. Nosso Senhor quis assim livrar-me, desde o primeiro instante da minha entrada no mundo, do poder do demônio, e tomar posse de mim. Ah! Que Ele ficasse também Senhor do meu coração até ao último instante da minha vida e por toda a eternidade! Já O terei expulsado do meu coração pelo pecado? V.ª Rev.ª sabe isto melhor do que eu. Se Ele ainda não se retirou de mim, foi unicamente um efeito da Sua infinita Misericórdia.

Minha mãe era muito devota do Sagrado Coração de Jesus. Foi ela que introduziu essa devoção na freguesia; e meu Pai, que era de uma piedade extraordinária embora pouco expansiva, seguiu em tudo a devoção da mãe. Não me lembro quando principiei a conhecer e a amar o Santíssimo Coração de Jesus. As primeiras imagens que recordo nos quartos de meus pais e irmãos eram as do Coração de Jesus e de Nossa Senhora. Recordo-me que, sendo ainda muito pequena, se fazia o mês de Junho na nossa Capela. Arranjava-se um altar com muitas flores e velas, e com uma imagem, quase de tamanho natural, do Coração de Jesus. De costume essa imagem não estava na Capela, servia só para o mês de Junho.

Fazia-me muita impressão e era para mim uma Festa grande, quando minha mãe mandava retirar aquela imagem da caixa em que se guardava. Eu teria talvez 7 ou 8 anos, ou menos ainda. Aquela imagem gravou-se no meu coração com o Santíssimo Sacramento e, pouco a pouco, Nosso Senhor começou a atrair-me a Si. Mais tarde voltarei a falar sobre essa imagem.

Nunca pude separar a devoção do Coração de Jesus da devoção ao Santíssimo Sacramento; e nunca serei capaz de explicar como e quanto o Santíssimo Coração de Jesus se dignou favorecer-me no Santíssimo Sacramento da Eucaristia. O Santíssimo Sacramento foi sempre pra mim um céu, e quase sempre se me representava Nosso Senhor na posição daquela imagem; e o Coração de Jesus, na Sagrada Eucaristia, como um sol radiante que me atraía a Si, me iluminava e me fazia arder de amor. A maior parte das graças que recebi foram ou à Sagrada Comunhão ou diante do Santíssimo Sacramento exposto, mas muitas vezes em relação com qualquer festa ou imagem do Coração de Jesus. Mais tarde tornarei a falar nisso.

Quando tinha 10 ou 11 anos, um Padre deu-me uma medalha do Coração de Jesus, que tanto estimei e que ainda trago comigo. Minha mãe fez-me também meter na Guarda de Honra, e parece-me que ela escolheu à hora das nove as dez porque eu tinha lição naquela hora; e como eu era muito garota e travessa, ela talvez esperava que, com isso, eu me emendava. Mas não obteve grande resultado, pois raras vezes me lembrei. Tinha então 9 anos. Assim eu fui crescendo à sombra do Santíssimo Coração de Jesus.

Já em pequena Nosso Senhor me favorecia com muitas consolações interiores nos dias de Festa, mas eu não sabia aproveitar destas graças e ofendi Nosso Senhor com muitos pecados.

Aos 11 anos, no dia 25 de Abril de 1875, fiz a minha primeira Comunhão. Digo esta data, porque o mês de Abril de 1878 e 1879 foi muito importante para mim em relação ao Coração de Jesus, o que mais tarde direi.

Nosso Senhor, que mais tarde tencionava inspirar-me o desejo de sofrer pela conversão dos pecadores e pelas necessidades da Santa Igreja, também permitiu que desde a minha mais tenra idade eu sentisse a felicidade de ser uma filha da Santa Igreja. Talvez a primeira coisa de que me lembro foi uma viagem a Roma, que meus pais fizeram no mês de Junho de 1867. Lembro-me das cartas que me escreveram, dos retratos do Santo Padre que eles trouxeram, e da grande festa com bandeiras no dia em que chegaram de Roma. Nosso Senhor, que mais tarde me queria escolher por esposa do Seu Coração, sempre se me mostrou com amor e doçura.

Até a própria morte me apareceu, a primeira vez que a encontrei, com fisionomia de paz e consolação. No mês de Março de 1870 morreu um Irmãozinho de nove meses. Lembro-me da resignação cristã de meus pais e da consolação que todos sentiram por termos um anjo no Céu. Assim, a morte, desde o princípio, aparecia-me como um meio para unirmo-nos com Nosso Senhor, e ainda hoje não posso ver com outros olhos. Vê-se nisso quanto Nosso Senhor é amável e fiel. Sem eu dar fé, Ele quis preparar-me, desde a mais tenra idade, a não desejar senão a união com Ele. E com que alegria eu senti aproximar-se a morte nas diferentes crises nos últimos três anos! Mas isto, contarei mais adiante.

A ida do meu Pai a Roma para o Concílio do Vaticano e o Culturkampf, que começou em 1872, pouco depois da guerra com a França, contribuiu para afervorar a minha devoção pela Santa Igreja. Os Padres da Companhia de Jesus e a maior parte das ordens religiosas que, desde criança, estimei e conheci, foram expulsos; o Bispo preso, depois de grandes demonstrações de veneração dos diocesanos, e no fim obrigado a ir para o exílio; muitas paróquias ficaram sem Padres; meu pai também foi perseguido. Todos esses acontecimentos aumentavam cada vez mais o nosso entusiasmo pela Santa Igreja e seus ministros. Não demoro mais aqui porque não pertence ao assunto. O Senhor Bispo de Munster, que tinha uma grande devoção ao Santíssimo Coração de Jesus, mandou fazer preces públicas dirigidas a este Divino Coração; e, antes de ir para o exílio, fez na Sé Catedral uma consagração solene da Diocese ao Coração de Jesus.

Não me lembro em que ano principiamos a ter na nossa Capela a benção nas primeiras sextas feiras do mês, mas foi muito cedo. No ano de 1870 meus pais principiaram a construir uma nova Capela. Por causa da guerra as obras ficaram atrasadas, e só no ano de 1875 teve lugar a consagração. Estavam presentes o Bispo de Munster e o de Mayence, tio da minha mãe. A Consagração fez-se no dia 5 de Agosto. Digo isto, porque esta data ficou memorável por vários motivos, como mais tarde se verá. O zelo infatigável que meus pais tinham para preparar uma morada digna, Ele quis recompensá-los escolhendo-me como Sua esposa e um Seu tabernáculo. A Capela ficou sempre o centro da nossa vida de família. E à medida que fomos crescendo, a mãe encarregou-nos do serviço de sacristã: primeiro a minha irmã Augusta, que Deus haja, e, mais tarde, a mim. Foi na Capela e na Igreja paroquial que recebi inumeráveis graças do Santíssimo Coração de Jesus Sacramentado.

Já disse que, no dia 25 de Abril de 1875, fiz  a minha primeira Comunhão na Igreja paroquial de Darfeld, e também meu irmão Max, pois estávamos sempre juntos. Já naquela ocasião eu suspirava pela vida religiosa, para pertencer toda, a Nosso Senhor. E como me contavam que alguns santos, naquela ocasião, sentiram pela primeira vez a vocação, eu esperava com ansiedade a mesma dita. Nosso Senhor, porém, não me concedeu nesse dia a graça que tanto desejava. Esperava, então, pelo dia da crisma. E no dia 8 de Julho do mesmo ano 1875, imediatamente depois de ser crismada, senti nascer em mim à graça da vocação, e nunca mais a perdi. Ela ia crescendo pouco a pouco comigo.

No ano de 1876 fizemos uma viagem a Paris para, nas férias da Páscoa, visitarmos a minha irmã Augusta, que ali estava no Colégio da Visitação, pois as freiras foram expulsas da Alemanha. A Igreja de Montmartre estava no princípio das obras, de modo que assistimos à benção na Igreja provisória. Mal pensava eu que, dezoito anos depois, voltaria lá como freira, a fim de pedir a benção ao Santíssimo Coração de Jesus exposto no Santíssimo Sacramento para a minha viagem para Portugal, para onde a santa obediência me chamava e onde o meu Divino Esposo me esperava, para eu aqui me imolar, como vítima do Seu Divino Coração, e receber os favores especiais que Ele me tinha guardado. Mais adiante falarei nisto.

Nos anos seguintes não houve nada de extraordinário. Eu ia guardando o meu segredo de me fazer Religiosa, sem, todavia, me fazer boa. Foi na idade de 12 a 16 anos que mais ofendi a Nosso Senhor, mas Ele não me abandonou. Tratou-me sempre com a mesma misericórdia. O que mais me lembro deste tempo são as festas na Igreja ou na Capela, e os divertimentos inocentes que tinha com os meus irmãos. Eu, naquele tempo, parecia mais rapaz que menina, e julgava que não havia ninguém no mundo tão feliz como eu. Desejava sempre ter sido rapaz para me poder fazer Jesuíta e ir para as Missões de África.

No ano de 1877 meus pais foram com a minha irmã mais velha a Roma. Em 1878 meus irmãos foram para o Colégio dos Jesuítas, em Feldkirch, no Tirol, e eu segui-os em 1879 para o Colégio das Religiosas do Coração de Jesus, em Riedenburg. Antes de ir para lá, Nosso Senhor quis mostrar-me mais claramente a minha vocação. Foi no dia 21 de Novembro de 1878 quando assistia a um sermão feito pela Cura da freguesia, na Igreja paroquial de Darfeld. Estava muito bem disposta porque senti sempre, no dia da Apresentação de Nossa Senhora, uma consolação especial. Como eu era Maria, meus pais também me olhavam naquele dia com mais ternura e uma certa devoção. Já em menina senti que este dia era meu, que tinha um certo privilégio de neste dia confiar tudo a Nosso Senhor, e Ele um direito especial sobre mim. Que consolação eu senti ao unir-me ao sacrifício que Nossa Senhora fez em tão tenra idade! E quanto eu tinha razão para amar este dia, mais tarde se verá.

O sermão ao qual eu assisti, como já disse, tratava das palavras: Diliges Dominum Deum Tuum ex Toto corde Tuo, etc. (‘Ama o Senhor teu Deus com todo o teu coração’). O pregador explicava dum modo muito singelo a obrigação que tínhamos de dar o nosso coração inteiro a Deus, porque Ele não se contentava com uma parte só: queria tudo ou nada. Veio-me logo à lembrança, então é preciso fazeres-te Religiosa. Principiei a refletir: meus pais, que são as pessoas mais piedosas e tementes a Deus que conheço, também não foram para o Convento; mas, casando, o coração ficou repartido entre Deus e as criaturas. Enfim, não pude resistir à graça. Bem queria tapar os ouvidos da minha alma, dizendo: o sermão não é só para mim, os outros ouvem-no também e não vão para o Convento… Mas não me foi possível resistir à voz de Deus, e esse dia foi decisivo para mim; ou antes, nesse dia Nosso Senhor começou a me atrair a Si duma maneira especial, fazendo-me conhecer cada vez mais que me queria somente para Ele, roubando-me o coração.

Desde então comecei a me desapegar das criaturas, e senti-me muito feliz no amor de Nosso Senhor. De tempos a tempos a graça foi mais forte, e aquela luta tão suave continuou: Nosso Senhor a pedir-me o coração, e eu a experimentar se podia unir o amor a Ele com o amor às criaturas.

Quando ouvi certas palavras do Evangelho, por exemplo, a pergunta que Nosso Senhor fez a Simão Pedro se Ele o amava mais do que os outros, etc., tudo parecia dirigido a mim. Oh! Que consolação experimentei naquelas lutas, que bondade e amabilidade do Santíssimo Coração de Jesus! Ele principiou já a me tratar como futuro Esposo; e foi assim que o único motivo que me puxou para o Convento era o desejo de Lhe pertencer inteiramente e ser Sua esposa.

Ninguém, porém, desconfiou de mim, porque fiquei como dantes: amiga de brincar, saltar, cantar, dar passeios com os meus pais e irmãos, a burro ou a cavalo, etc.

Das vaidades nunca me importei, porque me sentia feliz na companhia de Nosso Senhor, e também achava isso uma coisa baixa. E como eu sempre fui e ainda sou muito orgulhosa, aborrecia tudo o que me parecia baixo.

Nosso Senhor me inspirou um grande amor pelos pobres, e o exemplo de meus pais confirmava-me nisto.

Os dois anos e meio que estive no Colégio, foram para mim anos de tantas graças!… Não ouvi lá outras doutrinas e conselhos que não tivesse ouvido em casa dos meus pais; mas o exemplo daquelas boas Religiosas e o ar de Convento impressionavam-me. E como era a casa do Coração de Jesus, todo o bem me vinha desta fonte.

Aprendi a vencer um pouco o meu gênio. Pelo menos comecei a compreender que o amor ao Coração de Jesus sem espírito de sacrifício, é só imaginação. Comecei a amar e a procurar os sacrifícios para assim unir-me a Ele, de quem tanto desejava ser esposa.

Em 1880 (foi outra vez no dia 21 de Novembro) assisti a uma tomada de hábito. Um Padre da Companhia de Jesus, apóstolo do Coração de Jesus, pregou. E eu ouvi pela primeira vez as palavras seguintes: ‘Audi filia et vide, et inclina aurem tuam et obliviscera populum tuum et domum patris tui, et concupivit Rex speciem tuam’. (‘Escuta, ó filha, e vê, e inclina o teu ouvido, e esquece-te do teu povo e da casa de teu Pai. E o Rei cobiçara a tua beleza’).

Não posso explicar o que se passou então em mim. Tinha a minha vida desenhada diante de mim. Ouvi a voz de Nosso Senhor que me chamava a esquecer-me das criaturas para ser só d’Ele, e esquecer-me da minha pátria, dos meus pais e irmãos, que com tanta ternura amava. E Ele abaixou-se de tal maneira a mim que me pedia para ser esposa d’Ele: Et concupivit Rex… Oh! Quanto estas palavras me tocaram o coração! Foi Ele, o meu divino Esposo, que, mas dirigiu. Já não me pertencia: era toda, toda d’Ele. Oh! Meu Jesus, só Vós sabeis o que se passou entre nós. Não encontro palavras para o exprimir. Ele era meu e eu d’Ele!

No fim da cerimônia o Padre mandou-me chamar (ele era conhecido de meus pais, mas eu nunca o tinha visto). Depois de algumas relutâncias, principiei a confiar-lhe o que se passava na minha alma. Foi a primeira vez que rompi o segredo, e com muito custo. O Padre conheceu logo a minha vocação. Animou-se muito. E quando ele voltou ao Colégio, no dia 25 de Março de 1881, a coisa já estava tão adiantada que ele me aconselhou a falar com a Superiora e com a minha mãe, nas feiras da Páscoa. Quando me lembro daquele tempo, sinto-me confundida à vista de tantas graças.

Nosso Senhor abriu-me cada vez mais os segredos do Seu Santíssimo Coração; e à Comunhão e nas ocasiões da Exposição do Santíssimo Sacramento, inundava a minha alma com as Suas consolações e delícias.

Lembro-me em particular da Festa do Coração de Jesus, em 1880 ou 1881. Que comunhão naquele dia! Tocaram-me no coração as palavras de Nosso Senhor a Seus discípulos, no Evangelho do dia: ‘Manete in dilectione mea’ (Permanecei no meu amor). O Coração de Jesus convidou-me a permanecer no Seu amor, a não dar o meu coração senão a Ele, e senti então toda aquela paz, consolação, alegria, enfim, todo o céu que está escondido no Seu Divino Coração e na união com Ele!

Não sou nada poeta; mas em certas ocasiões, quando o amor de Nosso Senhor me abrasava mais o coração, fiz alguns versos. Os primeiros que fiz, exprimiam o desejo que me consumia de pertencer inteiramente a Nosso Senhor, ao Coração de Jesus. Foi em 1880 ou 1881. Lembro-me que terminavam assim: ‘Deixai-me morrer no Vosso Coração e ser Vossa para sempre’.

Oh! Sim, morrer ao mundo, a mim mesma, para viver no Coração de Jesus. E um dia morrer n’Ele, para no Céu, O possuir e viver n’Ele por toda a Eternidade. Sempre foram os meus ardentes desejos. Quando chegarei eu a realizá-los?… Peço a V.ª Rev.ª que me ajude.

No mês de Julho de 1881 voltei para casa. Custou-me deixar aquele Convento, onde o Coração de Jesus tanto me tinha favorecido.

Esqueci-me de dizer que no dia 8 de Dezembro de 1880 fui recebida como filha de Maria. Nossa Senhora sempre foi para mim uma Mãe desvelada. As datas mais memoráveis da minha vida foram, na maior parte, as festas d’Ela.

Chegada a casa, guardei o meu segredo. Só a minha mãe o sabia. Em Maio de 1882 fiz o retiro em Munster. Antes de entrar nele escrevi ao tal Padre Jesuíta de quem já falei, para pedir a sua opinião sobre a minha vocação. Ele respondeu que Nosso Senhor me chamava, mas que não seguindo o convite d’Ele, mesmo assim poderia salvar-me. Isto chegava. O que eu queria saber era se Nosso Senhor realmente me chamava, o que me parecia cada vez mais certo. Agora, para ganhar mais glória no Céu pela entrada num convento, isso não me importava; queria, sim, pertencer toda a Nosso Senhor, amá-Lo e glorificá-Lo, fazendo-me uma vítima por amor d’Ele. Da recompensa não me lembrava. Este motivo foi o único que sempre me guiava, e nunca senti outro impulso. Não tenho mérito nenhum nisto; Nosso Senhor prendia-me tanto o coração, que eu não podia pensar de outro modo. O desejo de a Ele me consagrar pelo voto de castidade ia sempre aumentando: ‘Jesu puritas virginum’ (Jesus, pureza das virgens’) era a minha invocação predileta, e Ele fazia-me gozar cada vez mais da suavidade da união com Ele. Os suspiros do coração por essa união já são um mar de delícias – o que não será a união mesma! Isso só mais tarde o havia de sentir.

No dia 5 de Agosto do mesmo ano declarei a meus pais a resolução definitiva de me fazer religiosa. Eles ficaram no auge de júbilo, porque só tinham o desejo de consagrar uma filha a Nosso Senhor.

Mas como eu, desde o último ano que estive no Colégio, andava bastante adoentada, e como se receava uma lesão nos pulmões, meu Pai disse-me que eu devia esperar até aos 21 anos. V.ª Rev.ª depois verá como Nosso Senhor determinou as coisas.

Em 1883 tivemos um retiro em casa, unicamente para as pessoas da família e familiares. No fim do retiro meu pai fez uma consagração solene da família e da casa ao Santíssimo Coração de Jesus.

No dia 8 de Dezembro de 1883 ou 1884 fiz, com licença do meu Diretor, o voto de castidade perpétua. Agora já era o que tanto desejava ser: uma esposa de Nosso Senhor. As minhas relações com Ele tornaram-se cada vez mais íntimas. Sentia-me tão feliz na companhia d’Ele!

Nesta época, não sei bem se foi em 1884, mas parece-me que sim, e antes de fazer o voto de que falei, eu estava na manhã da festa do Coração de Jesus a rezar na Capela diante daquela imagem que já em criança tanto amava. Fazia-se ao mesmo tempo a oitava da festa de Santo Antônio, padroeiro da Capela. O Santíssimo Sacramento estava exposto. A imagem, no meio de flores e velas, estava tão peto do altar do lado do Evangelho que, quando eu estava a rezar diante da imagem, via também com o mesmo olhara sagrada Hóstia na Custódia. Digo isto porque já no princípio expliquei que nunca pude separar o Coração de Jesus da Sagrada Eucaristia, pois aqui está verdadeiramente presente aquele Santíssimo Coração como parte do preciosíssimo Corpo de Nosso Senhor. A imagem representava aos olhos corporais o que a fé mostrava aos olhos da alma, e o meu coração estava abrasado nas chamas do Divino amor.

Acabei de comungar, toda unida a Nosso Senhor, embriagada com as delícias do Seu Coração, quando Ele me disse, não com uma voz que ressoasse nos meus ouvidos, mas com aquela voz interior que então ainda não conhecia e que hoje me é tão familiar: ‘Tu hás-de ser uma esposa do Meu Coração’.

Não sei dizer o que senti. Fiquei enterrada, aniquilada, confundida e, ao mesmo tempo, inundada pelas torrentes do Seu Amor. Que instantes tão felizes: uma esposa do Seu Coração! Mas como, quando, e eu tão pobre, tão miserável? Oh! Meu Jesus só Vós sabeis o que se passou entre nós, e ninguém jamais o compreenderá. Mas fazei-o compreender ao meu Pai espiritual para ele se afervorar no amor do Vosso Divino Coração.

O véu do meu futuro levantou-se por meio destas palavras, ainda que eu não compreendesse tudo. Fiquei, porém, assustada, e escrevi ao meu Diretor a contar o que se tinha passado, e a perguntar se isso seria imaginação minha ou um atrevimento da minha parte. Ele respondeu ainda hoje me lembro daquelas palavras: “Deve, então, ser uma esposa do Seu Santíssimo Coração? Perguntou-me se isto era arrogância ou ilusão. Como pode dizer isto se Ele mesmo a escolhe?”.

V.ª Rev.ª pode imaginar a impressão que estas palavras produziram em mim: confusão, reconhecimento, amor, enfim, um não sei quê de confiança, de união com Ele. Desde então, já não me lembrava senão do Coração de Jesus como meu Esposo. Coloquei por cima do meu genuflexório e do meu escritório uma estampa do Coração de Jesus. Que consolação sentia cada vez que olhava para o meu Esposo, que intimidade havia entre nós! Vivia com Ele, contava-Lhe tudo, e Ele sempre cheio de misericórdia e bondade.

Antigamente pensava que Nosso Senhor Jesus Cristo, não somente como Deus, mas também como Homem, estava presente nos nossos corações. Quando soube que isto só acontecia enquanto duravam as Santas espécies depois de comungar, fiquei triste e senti-me desolada, porque dera conta que tinha feito uma idéia errada da presença de Nosso Senhor, do Seu Coração, do meu Divino Esposo.

Naquela para sempre lembrada festa do Coração de Jesus, queixei-me a Ele, e desabafei a minha tristeza. Ele, na Sua infinita Bondade, ouvindo as queixas e súplicas amorosas que eu lhe fazia, prometeu-me ficar no meu coração e morar em mim, não somente com a Sua Divindade, mas também com a Sua Humanidade. Como, isso não sei; mas o que sei é que, desde então, quase sempre senti a Sua Divina presença.

Não O via, mas sabia que Ele lá estava dentro de mim, perto de mim, e não há um Esposo mais fiel do que Ele, nem uma esposa mais feliz no mundo do que a que viva numa união contínua com Ele.

A minha irmã mais velha às vezes admirava-se de eu estar, embora doente e com bastantes sofrimentos, sempre a mais alegre de todos; e dizia-me que lhe parecia a ela que, no mundo inteiro, não havia outra pessoa tão capaz de se regozijar como eu. Ela desconhecia o motivo da minha felicidade, mas eu bem o conhecia, e só pude agradecer ao meu Divino Esposo e pedir-lhe para estreitar cada vez mais os laços da nossa santa união.

A presença do meu Jesus suavizava-me tudo: queria dar-Lhe amor por amor, e suspirava cada vez mais pelos sofrimentos, como meio de morrer a mim mesma para viver só para Ele e dar-Lhe uma pequena prova do meu amor. E, desde então, o sofrimento nunca mais me deixou, mas foi aumentando pouco a pouco, até me ver hoje pregada na cruz com Ele.

Não me lembro bem se foi já nessa época ou mais tarde que Nosso Senhor me disse que Ele escolhia o meu coração para Sua morada, para ali encontrar um lugar de repouso no meio do esquecimento do mundo. O que sei é que mais tarde e por várias vezes, Ele renovou aquela promessa, como depois direi.

V.ª Rev.ª compreenderá como eu fiquei depois daquela festa do Coração de Jesus. Começou uma vida nova para mim, uma vida que já se parece um pouco com a bem-aventurança do céu, porque eu tinha no meu coração. Aquele que faz as delícias dos anjos e dos santos. Não sei se expliquei bem o que queria dizer; não falo aqui da presença sacramental de Nosso Senhor, mas de uma presença que Ele sabe. E Ele, o Deus Onipotente, não pode inventar mil modos para se unir com as nossas almas, e para suavizar o exílio das Suas esposas?… Ah! Se eu tivesse aproveitado sempre desta Divina presença! Mas, infelizmente, muitas vezes não me lembrei, ou muitas vezes ofendi Aquele Hóspede Divino pelas minhas friezas, ingratidões e pelos meus pecados. Quantos ataques de cólera, faltas de respeito e obediência a meus pais, faltas de caridade para com o próximo! Mas, Ele, sempre pronto a perdoar, continuou a tratar-me como esposa amada do Seu Coração.

À Comunhão das primeiras sextas feiras do mês, o meu Divino Esposo usava de uma ternura particular para comigo. E que direi da fidelidade e caridade deste Divino Coração?… Basta eu dizer que, o que Ele principiou naquele dia memorável, na oitava da festa de Santo Antônio e festa do Coração de Jesus, o confirmou dando-me o nome de Maria do Divino Coração, (o que mais tarde contarei), e o completou aqui, na pátria de Santo Antônio, fazendo-me pelos sofrimentos da doença e pelas delícias dos favores do Seu Santíssimo Coração, Sua esposa e Vítima.

É difícil explicar em linguagem humana coisas todas celestes. Mas, como V.ª Rev.ª deseja saber tudo, continuarei a narrar com toda a simplicidade o que se passou.

Nosso Senhor fez-se o meu Mestre; e à Comunhão e principalmente nos dias em que o Santíssimo estava exposto, Ele dignou-se ensinar-me e consolar-me. Não encontro termos para poder explicar o que o Coração de Jesus Sacramentado foi para mim. Os dias das Quarenta Horas, assim como as Quintas-Feiras Santas, eram dias cheios de graças. Oh! se a Igreja paroquial de Darfeld  pudesse contar o que se passou lá entre mim e Ele… Que horas tão felizes! Sentia-me abrasada do fogo do amor Divino. Parecia que Ele me tirava do meu nada para me fazer repousar no Seu Divino Coração. Já não era eu: ficava abismada n’Ele, um com Ele. Bebia com sede inexplicável as torrentes do Seu amor; e a união era tão íntima, que só faltava eu morrer para a completar. Mais adiante estarei obrigada a dar mais algumas explicações acerca disto.

Fiz sempre o possível para ninguém dar fé do que se passava em mim.

Naqueles anos eu meditava muitas vezes sobre as revelações do Santíssimo Coração de Jesus à Beata Margarida Maria e sobre alguns extratos das cartas dela. Compreendi cada vez mais que a devoção ao Coração de Jesus é inseparável do sofrimento, do sacrifício. E Nosso Senhor chamou-me cada vez mais ao caminho do sofrimento. Eu suspirava pelos sofrimentos; descobri que a minha vocação era sofrer com Ele e por amor a Ele, assim como a união com Ele. Pedi a Nosso Senhor que me desse sofrimento, e sofri por não poder sofrer bastante.

A jaculatória que eu mais usava naquele tempo, era: meu Jesus, cada vez mais sofrimento e cada vez mais amor.

Passei um verdadeiro martírio por causa desta sede de sofrimentos que Nosso Senhor me inspirava e que ia sempre aumentando, até que hoje me sinto satisfeita por estar pregada na cruz com Ele.

Cheguei à idade de 21 anos, mas não me foi possível realizar a minha entrada num Convento por falta de saúde. Continuei, portanto, em casa de meus pais até a idade de 25 anos.

Até 1886 fazia tudo como as minhas irmãs; e só meus pais, irmãos e alguns parentes sabiam o meu desejo.

A minha ocupação predileta era arranjar a Capela, bordar casulas, trabalhar em roupa para os pobres, visitar os pobres doentes, porque, nestas ocupações eu encontrava o meu Divino Esposo.

Gostava muito de estar só, porque não estava mais perto d’Ele, e Ele fazia-me tudo quanto Lhe pedia, lembrando-Lhe sempre que Ele me tinha escolhido para esposa do Seu Coração.

Cada vez que eu Lhe dizia que as minhas orações não valiam nada, mas que sendo Ele tão bom, eu tinha a certeza de ser atendida, obtinha sempre tudo. Fiz quanto pude para aumentar o culto do Seu Coração Santíssimo, e distribuí estampas e rezas do Coração de Jesus pelo povo da freguesia. E Ele pagou tudo com novas provas de amor. Ele também me inspirou, naqueles anos, o desejo de desagravar o Seu Divino Coração, e de fazer penitências em reparação dos pecados e pela conversão dos pecadores.

O meu confessor que, porém, não sabia o que se passava em mim, deu-me de vez em quando licença para usar uma espécie de cilício, que eu tinha feito de cordas. Senti uma grande satisfação em poder aumentar um pouco os meus sofrimentos, porque Nosso Senhor me chamava cada vez mais a sofrer por Ele.

Não posso deixar de contar um fato que mostra como Nosso Senhor é um Esposo fiel.

Em 1885, parece-me que foi neste ano, os médicos mandaram-me tomar os ares do mar. Fui com os meus pais a uma das ilhas do mar do Norte, Norderney. Apenas chegados lá (tinha-me custado muito ir, porque não queria deixar a vida recolhida com Nosso Senhor e a Capela), fomos à Capela católica, a única que lá existia, pois tudo era protestante. Entramos, mas não estava nessa Capela o Santíssimo Sacramento. Oh! Meu Jesus, eu havia de estar lá sem Vós?… Encontramos um Padre, e eu pedi a meu Pai que lhe perguntasse se não havia licença para ter o Santíssimo. O Padre respondeu que sim, mas que não havia quem cuidasse da lâmpada do sacrário, nem quem se responsabilizasse para guardar tudo em ordem. E, como ele não ia lá senão uma vez por semana, não se podia fazer nada.

Perguntei, então, ao Padre se o Santíssimo poderia lá ficar, se eu me responsabilizasse e tratasse da lâmpada. Respondeu-me que sim. E já no dia seguinte, à Missa, ele consagrou as sagradas partículas, e Nosso Senhor fez a Sua morada, pela primeira vez, naquela ilha. Fui eu a primeira quem acendeu a lâmpada do Santuário.

Não posso explicar as consolações que senti. Parecia-me que Nosso Senhor estava lá por minha causa e Ele estava todo entregue aos meus cuidados. Era eu que preparava tudo para a Missa, que ficava com a chave, etc. Como havia lá alguns Padres doentes, a Missa nunca nos faltou um só dia.

Como o Seu Coração é tão grato pelos mais pequenos serviços que Lhe prestamos!… Durante aqueles anos não faltaram às impressões Santas que me uniam cada vez mais à Santa Igreja.

Fomos a Berlim, onde conheci aqueles deputados do Centro que, com tanto zelo, lutaram pelos interesses da Santa Igreja. Visitei duas vezes, com meu Pai, o Senhor Bispo de Munster no exílio na Holanda, e recebi a Sagrada Comunhão das mãos desse grande confessor da fé. Meus irmãos fizeram uma peregrinação a Roma, onde o Santo Padre os recebeu com a mais paternal benevolência, lembrando-se de um Arcebispo da Colônia que pertencia à nossa família, e que tanto trabalhou e sofreu pela nossa Religião até ficar encarcerado.

Esposa de Nosso Senhor e filha da Santa Igreja, encontrei nisso toda a minha felicidade.

Os meus sofrimentos aumentaram pela doença grave de meu irmão Max, a quem amava como ninguém no mundo, e pelo agravamento da minha doença. O meu Diretor animou-me a fazer o sacrifício da minha vida. Custou-me, porque não queria morrer sem ser freira; mas, com a graça de Deus, fi-lo com toda a generosidade da minha alma.

E que alegria e consolação senti depois! Nosso Senhor fez-me sentir cada vez mais a Sua presença; e a lembrança de que talvez, em pouco tempo, eu estaria unida com Ele no Céu, enchia-me o coração de júbilo.

Gostava tanto, naquele tempo, de ouvir cantar os passarinhos, porque me parecia que eles me convidavam a voar com eles para o Céu, e que cantavam os louvores do Divino Esposo!

Pouco a pouco, porém, melhorei. Nosso Senhor queria completar o que tinha principiado, fazendo-me cada vez mais, uma esposa do Seu Coração.

Não me lembro em que ano foi, parece-me que em 1885, assisti a dois bailes. Meus pais não me obrigaram a isto, mas, como eu não queria dar nas vistas, fui com a aprovação do meu Diretor. Contudo, mesmo naquela ocasião não perdi a união com o meu Divino Esposo. No meio da dança lembrei-me d’Ele e senti-O presente. Parecia-me que todas as meninas eu era a mais feliz, porque nenhuma tinha um Esposo como o meu.

Mas, como não gostaria de assistir a mais bailes, e como às Quarenta Horas na Igreja paroquial de Darfeld estavam próximas e eu não queria perder a dita de arranjar o altar para a festa, pedi a Nosso Senhor que me mandasse uma constipação. Ele atendeu o meu pedido; a minha irmã foi sozinha ao baile, e, quando os pais chegaram com ela a casa o altar já estava pronto.

Devo, porém, confessar com muita mágoa que, mais tarde, às vezes o meu coração vacilou. Senti certo gosto de ver alguns rapazes, principalmente um que me dava atenção e para quem o meu coração se inclinava um pouco, ao ponto de sentir a tentação de arrefecer no amor a Nosso Senhor. Mas Ele não abandonou a Sua esposa, deu-me coragem para tudo vencer e libertar o meu coração de todos os afetos humanos. Louvado seja Ele para sempre!

Os sofrimentos interiores não me faltavam. Durante alguns anos sofri de escrúpulos acerca das minhas confissões; sempre me parecia que não me confessava bem, e tinha também outras tentações que muito me custavam.

Nosso Senhor, na Sua infinita misericórdia, deu-me um confessor muito desvelado; é a ele que devo ter vencido mais o meu mau gênio. Não tinha confiança no confessor que antes tinha; embora ele fosse muito bom, era bondoso de mais para mim. Senti que precisava dum que me apertasse mais, e a quem, ao mesmo tempo, eu pudesse abrir o meu coração acerca da minha vocação.

Pedi, durante muitos anos, essa graça a Nosso Senhor, e foi bem Ele que me concedeu.

Por ocasião das ‘Quarenta Horas’ de 1885 confessei-me pela primeira vez, a ele. Era o tal Cura, cujo sermão tanto me impressionou. Embora eu não falasse dos favores que Nosso Senhor me tinha concedido, fui-lhe muito franca; e, como já disse, é a ele que devo o ter mudado, pelo menos em parte, o meu mau gênio. Os ataques de cólera diminuíram o que era o principal. Mas custou muito, e ficou aquele orgulho, aquela soberba que V.ª Rev.ª ainda hoje conhece em mim e que é a raiz de todos os meus defeitos, como faltas de caridade e impaciências com que continuo a ofender o meu Divino Esposo, não obstante as instâncias que Ele me faz para eu me emendar.

Uma missão pregada pelos Padres da Companhia e um retiro que fiz, contribuíram também para eu entrar mais em mim.

O meu confessor era um grande devoto do Coração de Jesus. Foi ele que me recebeu a Confraria do Coração de Jesus e no Apostolado da Oração.

Tínhamos em casa uma vida muito regular: a Missa todos os dias, eu comungava três vezes por semana, tínhamos a nossa meditação, leitura com os meus pais, terço em comum e, durante o dia, trabalhávamos na direção da casa. Minha mãe exigia que aprendêssemos tudo o que fosse necessário para governar uma casa. Éramos muito unidos uns com os outros, e meus pais nunca nos perturbavam nos exercícios de piedade nem as obras de caridade. A Capela era sempre a nossa maior alegria. Naquela época eu dirigia o canto, e era a maior consolação de meu Pai ouvir-nos cantar na capela. Foram anos realmente felizes e muito favorecidos pelo Santíssimo Coração de Jesus.

Não conhecíamos nada das maldades do mundo. Não somente meus pais, mas também meus dois irmãos velavam pela nossa inocência como uns anjos da guarda visíveis. É certamente por isso que Nosso Senhor os abençoa tanto agora.

Foi só no Convento que eu conheci o que é o mundo.

Como eu pensava que casar não era senão amar muito um homem vigiava sempre muito o meu coração para não deixar entrar nele qualquer afeto humano, pelo qual eu pensava perder a virgindade, que estimava sobremaneira, sendo ela o meio de me unir ao meu Divino Esposo. E Ele era um Esposo tão zeloso, tão fiel, e velava com tanta ternura e tanto cuidado sobre mim, conduzindo-me pelo caminho do sacrifício e do Seu amor!…

Suspirava cada dia mais pela vida religiosa; mas como a minha saúde não era ainda suficiente, devia resignar-se a esperar. Não era o Convento que me atraía; o que eu desejava era pertencer sem reservas a Nosso Senhor e sacrificar-Lhe quanto era e tinha.

Nosso Senhor continuou a favorecer-me com as Suas graças, com os Seus favores; e o resultado daqueles colóquios tão amorosos, foi que resolvi principiar já em casa uma vida recolhida e de convento.

Em 1886 pedi essa graça a meus pais. Autorizada pelo meu confessor e com auxílio do meu Divino Esposo, venci todas as dificuldades: no dia 21 de Novembro comecei uma vida Religiosa em casa de meus pais. Vesti-me de preto, arranjei o meu quarto da maneira mais simples possível, fiquei dispensada de parecer diante das pessoas de fora, assim como dos trabalhos da direção da casa. Ocupei-me daqui por diante a rezar e a ler, a trabalhar para os pobres e para as Igrejas, a tratar e a visitar os doentes. Todos em casa respeitavam o  meu quarto como se fosse a cela de uma freira; e foi ali que gozei da companhia do meu Divino Esposo, durante dois anos.

 

 

 

 

II

21 DE NOVEMBRO DE 1886 – 29 DE JANEIRO DE 1891

 

Aquele 21 de Novembro de 1886 ficou para sempre memorável para mim. Não estava no Convento, mas vivia como no convento, e tinha ao mesmo tempo a felicidade de sofrer pelo meu Divino Esposo.

Esta mudança no exterior da minha vida obrigou-me a passar por muitas humilhações e contradições. Eu precisava disto para aprender a vencer o meu orgulho e o meu amor próprio, e reconheço que foi uma graça de Nosso Senhor. Com o Seu auxílio fiquei mais desapegada das criaturas; e a lembrança de ser uma esposa do Seu Coração, dava-me força e ânimo para tudo. Já não me custou tanto o não poder entrar para um Convento; parecia-me que tinha o principal da minha vocação: pertencia a Ele, vivia recolhida e praticava, tanto quanto me era possível, a santa pobreza. Mas faltava-me alguma coisa: não sofria bastante. E para completar o meu sacrifício faltava separar-me da minha família, à qual tanto amor tinha.

Quando me lembrava que um dia devia separar-me de meu irmão gêmeo, parecia-me impossível; e ainda que tinha a resolução firme de o deixar por amor a Nosso Senhor, pensava que naquele dia eu ia morrer de paixão. O Divino Coração de Jesus, sempre tão condescendente e misericordioso, determinou as coisas de tal forma que a minha entrada no Convento teve lugar numa época em que meus irmãos estavam fora de casa para seguir os estudos. E, assim o meu Divino Esposo facilitou a nós ambos o sacrifício que só por amor a Ele fizemos.

Nesses dois anos de noviciado na minha casa paterna, Nosso Senhor fez-me sentir, dum modo muito eficaz, a Sua presença. Ele estava comigo, fazia-se o meu companheiro, amigo e confidente; e a única lembrança de ser uma esposa do Seu Coração, suavizava-me todas as amarguras, privações e mortificações.

No Santíssimo Sacramento dava-Se a mim, e, às vezes, qualquer pensamento n’Ele bastava para eu sentir o meu pobre coração abrasado com o fogo do Seu amor.

Às vezes sentia-me tão unida a Ele, que não O podia deixar. Ele estava comigo e eu com Ele. Ele olhava para mim e eu para Ele. E isto bastava para nos compreendermos, e para eu sentir as delícias escondidas no Seu Coração.

Parecia-me que não podia rezar: só pensava n’Ele e lá ficava.

A minha maior consolação era arranjar a lâmpada do Sacrário; e a minha irmã Augusta, embora fosse à primeira sacristã, concedeu-me aquele privilégio. Quanta inveja eu tinha dessa lâmpada, que assim, dia e noite, ardia diante do Santíssimo! Ela aumentava as saudades que eu tinha de ser não somente uma esposa, mas também uma vítima do Santíssimo Coração de Jesus. E ao acendê-la, sempre Lhe pedi para nunca deixar apagar em mim a luz da Sua Divina graça, e para me fazer arder e consumir por amor d’Ele. E Ele ouviu aquelas súplicas: o azeite da lâmpada – a minha vida – está agora, com os sofrimentos da doença, a consumir-se; e é bem o amor do Seu Divino Coração, que Ele fez arder no meu coração, que me consome, pois eu ofereci-me a Ele como vítima, e Ele aceitou este sacrifício, como mais tarde se verá.

Senti cada vez mais o desejo de reparar os ultrajes feitos ao Seu Santíssimo Coração e de sofrer pela conversão dos pecadores.

Meus pais deram-me uma grande imagem do Coração de Jesus, a mesma imagem, em ponto pequeno que desde criança eu tanto estimei. Essa imagem foi minha consolação, pois vi nela o meu Esposo.

Quando mais tarde fui para o Convento, quis levar aquela imagem; e foi diante dela que um dia Nosso Senhor me comunicou alguma coisa, o que mais tarde contarei.

Nosso Senhor dignou-se mais tarde conceder-me graças especiais naquele quarto, onde durante dois anos vivi como esposa do Seu Coração.

Em 1890 a minha irmã mais nova, Antônia, adoeceu gravemente. Ela tinha quinze anos, e custou-lhe, no princípio, a resignar-se a sofrer e a morrer. Pouco a pouco ela mudou completamente, e foi de uma paciência e resignação admirável. Ao sentir a morte aproximar-se, estava num júbilo e numa alegria tão grande que já não parecia deste mundo; e a morte dela foi tão extraordinária, que se reconhecia ser uma graça especial. No momento em que morreu, ela sorriu. E estava tão resplandecente, que o seu confessor, que a assistiu, exclamou: ‘Que beleza!’ E logo que ela deu o último suspiro, os meus pais entoaram o Magnificat. Foi no dia 17 de Outubro, festa da Beata Margarida Maria!

No dia 2 de Abril de 1897 morreu, no mesmo quarto e não menos favorecida, a minha querida irmã Augusta, assistida por um Bispo, tio materno, dois Padres e toda a família, depois ter feito o sacrifício da sua vida com toda a generosidade. Durante a doença dela, a sua maior consolação era a de saber-se unida comigo no sofrimento, e eu passei aqui os tormentos da morte para lhe serem poupados a ela. Pediu ao seu confessor para lhe dar mais uma vez a Sagrada Comunhão, indicando que fosse daí a dez minutos. Foi bem acertado, pois no fim de dez minutos deu o último suspiro: Nosso Senhor a chamava à Comunhão eterna. Foi numa primeira sexta-feira do mês! Ela sempre teve uma devoção extraordinária ao Coração de Jesus, e era a irmã com quem eu tinha mais intimidade.

Ninguém poderá negar, nestas duas mortes tão santas, uma graça especial do Coração Jesus.

Minha mãe ganhou uma tão grande devoção por aquele quarto tão abençoado, que desde então o retirou do uso das outras pessoas.

Durante aqueles dois anos do meu noviciado em casa dos meus pais, só me preocupava uma coisa: caso recuperasse bastante a saúde, não sabia para onde Deus me chamava.

No princípio lembrava-me de entrar na Ordem do Sagrado Coração de Jesus, onde estive como educanda durante dois anos e meio. Mas não me parecia bastante austera, porque se encarregavam da educação de meninas ricas. Pensava também que, assim, eu ficaria mais em contato com os meus parentes, eu desejava sacrificar tudo.

E como eu tinha muito desejo de ir para as missões e longe de casa, resolvi entrar na Ordem das Irmãs de S. José, na Dinamarca. Fomos a Copenhagen. Eu suspirava por me poder sacrificar pela conversão dos pobres dinamarqueses.

Ficou tudo combinado, mas eu piorei. Meus pais, meu Diretor e as pessoas entendidas julgaram ser impossível eu entrar para lá; e o próprio Bispo de Copenhagen escreveu-me a dizer que, visto o estado de saúde a que tinha chegado, eu deveria perder por completo a idéia de entrar em Copenhagen; que teimar e esperar por isso seriam tanto como nunca entrar para o Convento, pois nunca mais eu teria saúde suficiente para poder suportar aqueles ares. Tinha, então, de reconhecer a vontade de Deus e tirar dali o pensamento, o que muito me custou. Não era por gostar muito daquela ordem, mas por gostar de uma vida apostólica.

Em 1885, quando os meus pais estiveram em Roma, pediram uma benção especial para mim ao Santo Padre, falando-lhe da minha falta de saúde e do meu desejo de entrar no Convento. O Santo Padre respondeu: Tant qu’elle n’a pas la santé nécessaire, il ne faut pas qu’elle entre, ce ne serait ni bien pour elle, ni pour la communauté. Mais vous lui laisserez toute la liberte pour sés exercices de piété et sés oeuvres de charité. (Como ela não tem a saúde necessária, é melhor que não entre, pois não seria bom nem para ela nem para a Comunidade. Mas dar-lhe-eis toda a liberdade para que siga os seus exercícios de piedade e para as suas obras de caridade). Essas palavras do Vigário de Jesus Cristo serviram-me de governo: esperei e confiei em Deus. Abandonei, então, a idéia de ir para a Dinamarca, parece-me que foi em 1887, mas não perdi a confiança de um dia entrar em qualquer outro Convento.

Como em 1888 melhorei muito, essa incerteza me afligiu bastante.

O meu confessor sempre me dizia: ‘Não se aflija. Logo que tiver bastante saúde, Deus lhe mostrará onde a quer’.

Lembrei-me de muitas Congregações, mas nenhuma me agradava; somente do ‘Bom Pastor’ nunca me lembrava, porque parecia-me necessário ter uma vocação muito especial para lá entrar. Apenas conhecia por alto, aquelas misérias que aqui se curam, mas sentia uma grande repugnância.

Naquela época pratiquei pela primeira vez uma obra própria duma Religiosa do Bom Pastor. Fui com minha mãe visitar os doentes ao Hospital. Estava lá uma infeliz rapariga que tinha dado escândalo. Notei na minha mãe certa agitação por eu me encontrar com aquela infeliz, pois sempre tinha o maior desvelo para desviar de nós tudo o que era pecado.

Eu, porém, pensei: Se Nosso Senhor agora cá estivesse, qual das doentes trataria com mais carinho? Decerto esta pobre pecadora. Venci a repugnância e o medo da minha mãe, e apertei a mão à infeliz. Pouco tempo depois eu havia de conhecer que era pela conversão dessas infelizes que eu tinha de sacrificar.

Foi na véspera da Visitação de Nossa Senhora. Estava na Igreja paroquial de Darfeld para me preparar para a confissão, à espera da minha vez. Veio-me, como um raio do Céu, o pensamento: ‘Tu deves entrar no Bom Pastor’. E isso com tanta clareza, que já não tive mais dúvidas.

Fui ao confessionário e disse ao Padre: ‘Já sei para onde devo entrar: é para o Bom Pastor’. Como o Padre era muito severo, eu temia que ele me perguntasse há quanto tempo me lembrava disto; e que, dizendo eu que fora naquele mesmo instante, eu apanhasse uma boa descompostura. Mas ele não perguntou e disse que se ia informar, mas foi-me dizendo que isto não seria para mim.

No fim de três meses, porém, ele disse-me que tinha tirado todas as informações necessárias, e que aprovava que eu entrasse para a Congregação do Bom Pastor.

Nosso Senhor permitiu que, durante aquele verão, fossemos passar três meses numa quinta de meu Pai, perto de Munster.

Confiei a minha idéia ao confessor de lá, o Senhor Vigário Geral, que, pouco tempo antes, tinha feito por ordem do Senhor Bispo, a visita canônica no ‘Bom Pastor’. Ele animou-me muito a entrar, porque, dizia ele, naquela Comunidade reinava muito bom espírito e era fácil aceitar pessoas de saúde fraca.

Esperava cada vez mais da misericórdia do meu Divino Esposo a graça que, durante tantos anos, solicitava.

Como o convento ficava perto da quinta, ouvia-se o repicar do sino. Quando ouvia aquela campainha, parecia-me que a voz do meu Divino Esposo me convidava com tanto amor e ternura. Os meus santos desejos aumentavam todos os dias e resolvi falar à minha mãe, embora temesse que ela não me julgasse bastante forte para entrar já; e que ela e o meu pai não gostassem daquela Ordem. Mas o Coração do meu Esposo velava sobre mim, e fez desaparecer todas as dificuldades.

Antes de dizer mais nada, pedi a minha mãe que me fizesse ver um médico, para ver se eu já tinha saúde suficiente para ir para um Convento. A minha mãe assim fez e disse-me, depois da consulta, que o médico dissera que estava ainda muito fraca e que não servia para muitos trabalhos, mas que tudo dependia da escolha da Ordem. Seu eu quisesse entrar na Irmãs da Caridade, que ele então diria que não; mas se eu tencionava, por exemplo, entrar nas Irmãs Brancas (é assim que lá chamam às Irmãs do Bom Pastor), ele não faria dificuldade.

Minha mãe, que não sabia de nada, perguntou-me então para onde eu tencionava ir. Respondi que era para as Irmãs Brancas. Ela ficou admirada e impressionada, mas, tanto ela como o meu pai, mostraram-se muito satisfeito e contentes.

Tratei de pedir a admissão, e foi no mês do Rosário que tudo se decidiu.

Escolhi o dia 21 de Novembro para entrar, e Nossa Senhora fez-me a graça de dar entrada com Ela na casa de Deus. Assim tinha chegado ao que tanto desejava, mas isso não impediu que eu sentisse o grande sacrifício de deixar a minha família, a casa de meu pai, os meus pobrezinhos, aquele povo da minha freguesia, tão bom e tão dedicado, e aquela Capela da Igreja paroquial, onde tantas graças tinha recebido. Mas a lembrança de ser e de ficar cada vez mais uma esposa do Santíssimo Coração de Jesus, dava-me as forças necessárias para completar o meu sacrifício.

Meus pais e irmãs acompanharam-me ao Convento. Foi às quatro horas da tarde que lá chegamos.

Antes de bater à porta do Convento, fomos à Igreja. E que grande não foi a minha surpresa quando vi o Santíssimo Sacramento exposto! Lá estava Ele à minha espera, o meu Esposo, o meu Jesus, e o Seu Coração aberto para me receber. Fiquei aniquilada de confusão e de gratidão. Senti o meu coração arder de amor e de desejos de O possuir e de ser toda d’Ele.

O Coração de Jesus na Sagrada Eucaristia tinha sido o meu guia, tinha-me chamado há tanto tempo; e aqui estava Ele para me dar entrada no santuário do Convento, onde eu devia imolar-me como vítima e como esposa deste Divino Coração. Esperava-me também para me dar entrada no Seu Coração, e abrir-me cada vez mais o tesouro das Suas graças e misericórdias.

Entoava o Magnificat; eram as únicas palavras que exprimiam o que eu queria dizer. Nunca me esquecerei daquelas impressões.

Assim, foi o meu Divino Esposo o primeiro a receber-me. Era também só por Ele que eu para lá ia, e era só a Ele que eu desejava.

Meus pais, depois de me terem entregue à Superiora, que me acolheu com a mais maternal bondade, despediram-se de mim deixando-me a sua benção.

Pouco depois tocou para a Benção, e eu voltei aos pés do meu Esposo, mas já no Côro das Religiosas. Que instantes tão abençoados! Já estava no lugar pelo qual durante tantos anos suspirava: Inventi quem diligit anima meã (‘encontrei aquele a quem ama a minha alma’).

Que paz, que consolação, que santa união!

Apenas entrada, procurei logo saber se já havia na Comunidade uma Irmã chamada Maria do Coração de Jesus, porque parecia-me que este nome devia ser o meu. Fiquei, porém, triste ao saber que já havia uma Irmã com este nome. Nosso Senhor, então, não me queria como esposa do Seu Coração?… Aquelas palavras de 1884 e todos aqueles favores foram então ilusões?… Conformei-me com a Santíssima vontade de Deus, ainda que com pena. Mas Ele, que nunca me decepcionou, embora por vezes me faltasse à confiança, já tinha tudo preparado.

A minha tomada de Hábito foi marcada para o dia 10 de Janeiro de 1889, oitava dos Santos Reis. Foram eles que me introduziram no Noviciado como esposa do Divino Coração. Foram também eles que naquela crise tão dolorosa, mas tão cheia de graças, em  1897, me guiaram; e são eles que V.ª Rev.ª me deu como protetores para este ano, em que Nosso Senhor se digna dar-me provas tão evidentes que só dadas a uma esposa do Seu Coração.

Será o último ano da minha vida terrena?… Ele o sabe, e isto basta.

Alguns dias antes de eu tomar o santo hábito, a Superiora mandou-me chamar e perguntou-me se eu tinha algum desejo particular acerca do nome. Como eu já não podia ser Maria do Coração de Jesus, respondi que não. Ela, então, disse-me que se tinha lembrado me dar o nome de Maria do Divino Coração, ou Maria de S. Luís de Gonzaga.

Fiquei confundida e profundamente comovida. O meu Divino Esposo não me tinha enganado! Inútil será dizer qual dos nomes escolhi.

Fiquei tanto mais admirada quanto este nome não se usa na Alemanha, e até notei que a minha família o achou esquisito, mas eu bem sabia porque devia ser este nome e não outro.

Na Comunidade nunca tinha havido uma Religiosa com este nome. Nosso Senhor confirmou assim a Sua promessa, e concedeu-me ao mesmo tempo um aumento de confiança e o desejo de sofrer. É impossível que uma esposa do Divino Coração esteja um instante sem sofrimentos, ainda que fosse apenas o sofrimento de não O poder amar tanto quanto ela o quereria, e de não O ver amado!

O dia da minha tomada de hábito foi um dos mais felizes da minha vida. Nunca poderei explicar o que senti ao despir os vestidos mundanos e ao vestir o santo hábito. Só o meu Divino Esposo o sabe. Ele principiou naquele dia aquela santa união que no dia da Profissão deveria ser confirmada, e que agora, na doença, está coroada!

Cantei com todo o afeto da minha alma e do meu coração o que o cerimonial manda cantar: “Regnum mundi et omnem ornatum saeculi contempsi, propter amorem Domini Jesu Cristi. Quem vidi, quem amavi, in quem credidi, quem dilexi.” (Renuncio ao reino deste mundo e às suas vaidades por amor do Senhor Jesus Cristo. A quem vi, a quem amei, em quem acreditei, por quem me apaixonei). Sim, eu deixava com santa alegria as vaidades do mundo, os carinhos da minha família, que assistiu a esse ato sublime, por amor d’Ele, que desde a minha infância me tinha chamado com tanto amor, com tanta ternura, e estava pronta e só desejava viver e morrer por Ele. Quem vidi, tantas vezes com os olhos de fé no Santíssimo Sacramento, e onde recebi tão celestes favores; quem amavi, antes que algum amor humano tivesse repartido o meu coração; in quem credidi ,quando Ele me chamou a ser uma esposa do Seu Coração; quem dilexi, a quem hoje me dava sem reserva, como esposa e vítima, a quem desejava amar até ai último suspiro da minha vida.

“Quam dilecta tabernacula tua Domine virtutum; concupiscit et deficit anima mea in atria Domini” (Quão amável é a Tua morada, Senhor dos exércitos! A minha alma suspira, desfalece, desejando os átrios do Senhor), cantou o Côro.

E quando se dizia no salmo, um pouco mais adiante, que o passarinho tinha encontrado a sua morada, assim também eu tinha encontrado o lugar do meu repouso, a minha doce morada no Coração amantíssimo de Jesus.

Com que ternura Ele se dava a mim na Sagrada Comunhão, nesse dia tão feliz!

A minha Madre Superiora, uma Religiosa de idade avançada e uma alma toda de Deus, conduziu-me ao Noviciado e confiou-me aos cuidados da Mestra de noviças, a Irmã Maria do Coração de Jesus, onde, daí por diante, eu deveria preparar-me para me imolar como vítima durante o resto da minha vida.

Ela sentiu uma grande consolação naquele dia, porque numa ocasião em que se via obrigada a tomar uma decisão importante, pedia a Deus, com todo o fervor da sua alma, o que nunca tinha pedido: que, como prova de que aquela decisão correspondia à Sua Vontade, mandasse uma postulante de uma família nobre, pois que até ali não tinha entrado nenhuma.

Pouco tempo depois eu pedi a minha admissão. Foi por isso que a Superiora me considerou sempre como um presente que Nosso Senhor lhe fez, e o dia da minha tomada de hábito e da minha profissão foram dias de consolação para ela.

Os desejos que eu tinha de sofrer cada vez mais deviam realizar-se desde o Noviciado. Os trabalhos e as mortificações não me custavam, mas custou-me muito, por causa da minha fraca constituição, não poder observar a Regra em tudo como as outras.

O que mais me mortificou foi ver que, às vezes, algumas das Irmãs se lembravam da posição que eu tinha no mundo.

Eu desejava não somente esquecer-me de tudo isso, mas que também as outras já não se lembrassem; e ficava contentíssima quando às vezes, nos trabalhos ou em qualquer outro encontro, eu tinha ocasião de “dar uma bofetada” à condessa.

O Divino Coração de Jesus sempre aumentou em mim os desejos de me sacrificar em tudo.

A primeira graça que Ele me concedeu depois de eu tomar o hábito foi a de ir trabalhar junto das penitentes. Parecia-me uma atenção especial do meu Divino Esposo que, assim desde o princípio, me queria deixar tomar parte na obra da conversão dos pecadores, tão cara ao Seu Coração. Senti-me indigna de um favor tão grande.

Ele fez-me mais uma graça: a de nunca ter dificuldades com elas; e se eu preferia algumas, foram sempre as mais infelizes e repugnantes.

E na verdade não há maior consolação do que a de poder receber uma ovelhinha desgarrada, e de imitar as virtudes do amantíssimo e misericordiosíssimo Coração de Jesus. Sempre lhe recomendei aquelas pobres almas; e quando havia uma mais renitente, lembrava a Nosso Senhor que eu era a esposa do Seu Coração, e que, por isso, Ele deveria dar-me aquela alma.

É unicamente ao Coração de Jesus que eu atribuo o bom resultado que sempre obtive na minha convivência com as penitentes, e, muitas vezes, quando o caso parecia desesperado, Ele aplanou todas as dificuldades. Quando se pede uma alma ao Seu Divino Coração, Ele nunca nega, embora, às vezes, exija muitas orações, muitos sacrifícios e sofrimentos.

Quando Ele não quer servir-se de mim para fazer bem à uma alma, não me inspira aquela confiança no Seu Divino Coração; mas, inspirando-a, as minhas esperanças nunca ficam frustradas.

Se V.ª Rev.ª ainda não experimentou, peço-lhe que experimente: quanto mais impossível lhe parecer à conversão dum pecador, tanto mais confie no Santíssimo Coração de Jesus, e verá que eu falei a verdade. Mas deve preparar-se para muitos sofrimentos e desgostos; nunca, porém, deve desanimar. E se o pecador, mesmo depois de ter dado provas de conversão torna a cair no pecado, não desanime. No fim o Coração de Jesus vencerá aquele coração duro e fortificará aquela alma fraca. Mas é preciso fazer violência ao Divino Coração de Jesus pela sua confiança.

Meio ano depois da minha entrada no Noviciado, Nosso Senhor principiou a enviar-me aqueles sofrimentos interiores, que dali por diante deviam martirizar-me por muito tempo.

Comecei a duvidar da minha vocação, não de ser religiosa, disso nunca duvidei, mas senti uma inclinação tão grande por uma vida austera e uma ordem contemplativa, que julguei não ser a minha vocação a de religiosa do Bom Pastor.

Aquela vida parecia-me suave demais, porque eu sempre suspirava pelos sofrimentos; e como Nosso Senhor me favoreceu com graças especiais de união com Ele, aqueles trabalhos era para mim muito custosos.

O meu Divino Esposo fez-me sentir a Sua presença duma maneira tão viva e inspirava-me uma fome e sede tão grande de O possuir e amar, que às vezes parecia-me impossível viver. Ah! Naqueles instantes tão felizes bem se conhece que a nossa alma está sujeita a uma prisão, a um cárcere terrível, enquanto está encarcerada neste miserável corpo.

E se devesse passar pelos tormentos do inferno, ela não se importaria: somente suspira, pela união com Ele, pelo amor d’Ele, o único que pode satisfazer o nosso coração.

Aquelas graças de união com Nosso Senhor e aquela fome de O amar e possuir eram às vezes tão violentas, que a minha saúde começou a enfraquecer. E isso é bem natural: aquela vida tão celeste não é compatível com as forças físicas, pelo menos parece-me isto.

Para podermos um dia gozar da visão de Deus na glória, o nosso corpo deve morrer, a nossa alma deve sair dele; e somente depois de ficar dissolvido em pó e cinza, ressuscita para uma vida nova.

Assim, também, se nesta vida desejamos unir-nos a Deus, devemos mortificar a nossa carne; e a quem Nosso Senhor dá aquelas graças mais íntimas, deve preparar-se para passar por muitos sofrimentos corporais.

A alma, abrasada com aquele desejo de amar e possuir Deus, precisa mesmo desses sofrimentos, como certo lenitivo.

Não se pode nem se quer viver sem sofrimentos. Já não há escolha: tudo o que mortifica e faça sofrer é uma consolação.

Sentem-se as dores, as humilhações, o abandono, mas nunca bastam a quem está abrasado do desejo de sofrer por amor a Nosso Senhor.

E assim passei por tentações terríveis, desalentos, tormentos de consciência, saudades da família, sofrimentos espirituais e corporais, mas sempre sofri por não poder sofrer bastante.

Só desde que estou pela doença pregada na cruz, encontrei a paz.

Nosso Senhor inspirava-me, já no Noviciado, o desejo de me desapegar de tudo; mas que lutas violentas eu passei por causa do amor que tinha a meu irmão Max! Parece-me que o amor de gêmeos é muito mais intenso que qualquer outro; a natureza passa como pelas angústias da morte ao ver-se separada de um irmão gêmeo.

Nunca poderei explicar o que sofri durante quatro anos; não passei um só dia sem chorar por ele – e que lágrimas! Ah! Meu Jesus! Se não tivesse sido por Vós, nunca, nunca eu teria tido forças para Vos sacrificar meu irmão gêmeo, a quem amava mais do que a mim mesma.

Mas a graça de Deus pode tudo, e assim eu venci o meu coração. O que mais me custou, foi saber que ele passou pelo mesmo martírio. Desde que eu saí de casa, ele não parava, não sossegava; em todos os lugares e a cada passo se lembrava de mim.

Nosso Senhor sempre tão bondoso, compadeceu-se dele, deixando-me ficar em Munster até ele casar.

Quando ele me trouxe a notícia que tinha o casamento tratado, eu fiquei imediatamente com a idéia: agora acabou aqui a minha missão, ele já não precisa de mim; Nosso Senhor mandar-me-á para qualquer outra parte.

E assim foi: ele casou no dia 14 de Outubro de 1893, e no dia 24 de Janeiro de 1894, eu parti para Portugal.

E ele está agora bem recompensado. Tem uma mulher de grande virtude e piedade, e a qualidade característica dela é a sua devoção ao Santíssimo Coração de Jesus!

Logo depois de casados, mandaram fazer uma estátua do Coração de Jesus para a Capela deles; consagraram a primeira filha, ainda antes de nascer, ao Coração de Jesus, e chamaram à segunda Margarida, em honra do Coração de Jesus.

O meu Divino Esposo, que me queria toda para Ele, sem reservas, e que queria ser a minha única satisfação e consolação, tirou-me pouco a pouco tudo o que me podia consolar.

Sentia um isolamento muito grande, e aborrecia-me tudo. Já não havia nada: nem exercícios, nem trabalhos, nem recreios, nem nada que desse algum gosto.

De manhã até a noite sentia um peso sobre mim, que às vezes me parecia insuportável, e isso durou muitos anos.

Durante o tempo do Noviciado, Nosso Senhor ainda muitas vezes me consolava na Sagrada Comunhão; e foi então nos dias de Exposição do Santíssimo que Ele me animou e me ensinou a levar a cruz, e que me deu a conhecer que os meus sofrimentos deviam ir sempre aumentando, que eu devia andar no caminho da cruz e ficar unida e pregada nela com Ele.

Que Mestre tão prudente é Ele! Prepara-nos com tanta misericórdia e dá todas as graças necessárias. E quando, depois de muitos anos, se realiza o que Ele ensinou, já não custa, porque tudo está prevenido e preparado.

Lembro-me de algumas instruções que Ele me fez durante o meu Noviciado.

Numa ocasião Ele disse-me: ‘Esposa do meu coração, chega-te ao Meu Coração’. E em seguida falou-me dos sofrimentos e da minha vocação de sofrer e de me imolar por Ele.

Alguns instantes de união com Ele compensavam-me por longos meses de tribulações e sofrimentos.

Às vezes perdia-me em qualquer pensamento. Assim, lembro-me quando as palavras Deus absconditus (Deus escondido) me impressionavam.

Fiquei horas e dias naquela meditação, ou não sei o que era, e havia momentos em que me parece que Nosso Senhor me roubou o coração para me deixar gozar d’Ele, na mais íntima união.

Não posso explicar isto: Gustate et videte quoniam suavis est Dominus (Saboreai e vede como o Senhor é bom). Só quem conhece isto por experiência, pode compreender o que se passa, então, entre a alma e Deus.

E como eu escrevo isto somente para V.ª Rev.ª, V.ª Rev.ª, já me compreenderá, e não é preciso entrar em explicações que não sei dar.

Sim, Ele é bem o Deus escondido: no Santíssimo Sacramento, que é a nossa vida, e nosso tudo, Ele esconde a Sua Divindade e Humanidade para se dar a nós, para nos inspirar confiança. E os efeitos da visita deste Deus escondido, seja visita sacramental ou só dum favor especial, são também escondidos. Só as almas que Ele assim se digna visitar os conhecem.

Aqui vou explicar alguma coisa acerca das comunicações de Nosso Senhor.

Já em 1884 ouvi aquela voz que me chamava a ser esposa do Seu Divino Coração; outras vezes eram colóquios amorosos, palavras consoladoras ou instrutivas, às vezes com carácter de certa profecia.

Ele tem diferentes modos de se comunicar. Há certas palavras que nunca se podem esquecer. Algumas delas dizem respeito ao presente, aos deveres atuais; outras são instrutivas para toda a vida, outras só se realizam depois de muito tempo, sem a alma, na ocasião em que as ouve saber como elas se realizarão. Só fica com a certeza que é Ele que fala, e que elas se realizarão!

As palavras instrutivas, de consolação, de amor, já as recebia em casa e durante o Noviciado. Posso assim dizer que Nosso Senhor mesmo se fez o meu Diretor, embora eu, sempre que tinha ocasião, as sujeitasse à opinião do meu diretor. Mas não dizia que Nosso Senhor, mas tinha dito, dizia somente que me parecia que Nosso Senhor queria de mim isto e aquilo.

Foi só a V.ª Rev.ª que confiei os meus segredos todos, e não lhe escondi nada porque Nosso Senhor mesmo assim o quer.

As palavras proféticas, que são curtas e precisas, até à época em que estou a falar, não foram muitas.

Lembro-me com certeza só daquelas de 1884. Mais tarde deviam ser mais freqüentes, e Nosso Senhor principiou também a dizer-me palavras com respeito a outras pessoas, e desejos que tem.

E como daqui por diante terei de contar mais alguma coisa acerca disso, direi já aqui que Nosso Senhor me comunicou coisas secretas por meio de uma imagem interior, ou por meio de uma impressão interior muito forte, ou servindo-se mesmo, às vezes, de uma estátua ou imagem do Seu Coração, de um crucifixo, etc…

Às vezes sinto aquelas impressões e ouço aquelas palavras sem estar a rezar; apoderam-se de mim sem eu saber como e sem poder resistir, mas, de costume, é na ocasião da Sagrada Comunhão, isto é depois de comungar, ou quando estou a rezar diante do Santíssimo Sacramento exposto, e, às vezes, quando menos o espero.

Assim já fica dito, em geral, o que mais tarde terei de explicar por miúdos.

Mas nunca vi nada com os meus olhos corporais, nem ouvi nada com os meus ouvidos: é tudo interior, como se uma voz falasse e se ouvisse no coração e, ao mesmo tempo, no entendimento; as faculdades da alma estão reunidas e recolhidas em Nosso Senhor numa paz profunda, embora muitas vezes seja só por um instante. Às vezes é mesmo tão rápido, que nem se sabe explicar.

Passa-se às vezes muito tempo sem eu ver, ouvir ou sentir nada; outras vezes acontece que recebo estas graças mais a miúdo, como V.ª Rev.ª já deve ter notado.

Custa-me escrever tudo isto, mas a santa obediência o manda e Nosso Senhor prometeu ajudar-me e fazer-me lembrar e fazer sentir de novo tudo, como se fosse agora que isto se passasse.

E na verdade sinto uma facilidade extraordinária em escrever isto. Não sei se eu me expliquei acerca do que ouço no meu interior. É difícil encontrar termos que expliquem, pelo menos um pouco, o que é puramente sobrenatural, mais a mais por quem é tão estúpido como eu, e sendo numa língua estrangeira.

Pode ser que diga tolices, mas V.ª Rev.ª depois terá a bondade de me corrigir. Digo da melhor maneira que posso e como sinto; e se não digo bem, é por não poder.

Passei o tempo do meu Noviciado com aquelas graças, de união por um lado; e com aquelas lutas, que às vezes me pareciam infernais, por outro lado.

Para aumentar a minha tribulação, não tinha um confessor a quem eu me pudesse abrir. Calei a maior parte das lutas, enquanto não entrava pecado nelas, e as graças todas. E como, desde criança, eu estava habituada a ter um Diretor certo, custou-me então muito não ter a quem me pudesse abrir.

Falava nas minhas dificuldades à Superiora e à Mestra, mas nunca pude dizer tudo; e aquelas graças interiores também só as comunicava sem explicar tudo. Parecia-me que ninguém me compreendia, o que Nosso Senhor permitiu para me mortificar ainda mais.

Rezei com todo o fervor e com muitas lágrimas a Nosso Senhor para que me mandasse um Diretor, mas o Seu Coração parecia não ouvir as minhas súplicas. Até que em Junho de 1897, depois de ter oferecido todo o mês de Maio nesta intenção, V.ª Rev.ª só aceitou enquanto eu estivesse doente.

Aproximava-se o tempo de eu acabar o meu Noviciado, e as tentações contra a minha vocação de ser religiosa do Bom Pastor aumentaram, e estava quase resolvida a sair da Congregação.

Durante o retiro, em Novembro de 1893, expliquei as minhas dúvidas ao Padre que pregava. Nosso Senhor permitiu que ele fosse um Padre sem experiência. Fiquei muito atribulada com a confissão geral que fiz e ao ver que mesmo o Padre não sabia que conselhos me dar.

Ele consultou a Superiora; e como esta estava na firme certeza que eu tinha vocação para a ordem do Bom Pastor, então disse-me para ficar.

Que lutas eu passei naqueles dias: senti uma repugnância como nunca mais senti. Tudo me parecia escuro. E quando me lembrava que se aproximava a profissão, parecia-me que devia deitar-me, com os olhos tapados, num abismo profundo.

O meu Divino Esposo, porém, não me abandonou; eu estava quase a desesperar, mas o Seu Coração velava.

Aconteceu-me alguma coisa acerca do padre. Senti daquelas impressões interiores, das quais já falei que ele ia ser ou um grande santo ou um demônio. Desde então sempre temi por ele e nunca deixei de rezar. Dois anos depois ele saiu da Ordem, fez-se Protestante e casou.

E é a ele que devo o estar ainda na Ordem do Bom Pastor! Que o Divino Coração de Jesus se compadeça dessa pobre alma e o converta.

5 de Maio de 1899.

 

 

EXCERTOS AUTOBIOGRÁFICOS DE ALGUMAS CARTAS DA B. MARIA DO DIVINO CORAÇÃO

Ao seu Confessor

 

O destinatário das cartas de que damos extratos é D.Teotónio Vieira de Castro, confessor da Bem-aventurada. “Estas cartas, escreveu ele, contém a narrativa de muitas graças e comunicações divinas com que o Senhor favoreceu a Sua Serva e revelam segredos íntimos da sua vida espiritual e a progressiva elevação do seu espírito sobrenatural”.

Respeitaremos a seleção feita para a edição de 1929, apenas apondo títulos, quando os não há, e suprimindo subtítulos quando os há.

 

1- Esposo e Mestre. “Lembro-me de algumas instruções que Ele me fez.”

Carta de 19 de Novembro de 1896

Trad.

Meu Reverendo Padre

Permita-me que eu experimente, se saberei, por escrito explicar melhor as coisas. Indicarei os diferentes pontos um por um.

Como lhe disse, Nosso Senhor fala-me algumas vezes ou de todo interiormente (como muitas vezes depois da Santa Comunhão) ou também por algum meio exterior: crucifixo, estátua, etc.; a maior parte das vezes por meio do Santíssimo Sacramento, principalmente nos dias de Exposição, que, muitas vezes, foram para mim dias de abundantes graças. Em certas ocasiões parecia tão unido a mim, que estava como que inebriada do Seu amor. É também nesses momentos que Ele me dá instruções, principalmente sobre o valor dos sofrimentos e sobre a vida de união com Ele.

Já no mundo e no Noviciado Ele começou, mas continua Suas lições.

Depois de me ter mostrado, no Noviciado, o Seu ardente desejo de que eu me ofereça a Ele como vítima, explicou-me de que modo a Santíssima Trindade é glorificada pelos sofrimentos de uma alma que a Ele se consagra. O Eterno Pai vê nessa alma a imagem do Seu Divino Filho e olha-a com complacência; o Espírito Santo vê nela um instrumento para tornar férteis as graças que a Paixão de Nosso Senhor mereceu; o próprio Jesus Cristo vê nessa alma a Sua esposa, na qual Ele pode continuar a obra da Redenção. – Há alguns dias que, voltando novamente a isto, Nosso Senhor me esclareceu ainda mais o entendimento sobre esta matéria explicando-me que a nossa fecundidade espiritual se baseia na união do Divino Esposo com a esposa pelos sofrimentos e que, por este meio, Ele quer salvar muitas almas. Depois exortava-me a sofrer por puro amor d’Ele, sem desejo de recompensa, se bem que, no Seu infinito amor, não deixaria de ma dar.

Um dia, durante a doença, disse-Lhe que, vendo eu cada vez mais a minha miséria, os meus pecados e o meu nada, não compreendia como Ele podia abaixar-se de tal modo a mim. Receava eu que a Sua honra sofresse com isso.

Disse-me que, se Ele desse tais graças a uma alma perfeita, seria menos manifesta a Sua Misericórdia; mas, que ao escolher uma alma tão fraca e miserável, como a minha, nisso fazia brilhar a Sua Misericórdia e glorificava-se a Si mesmo.

Isto consolou-me muito e peço a Vossa Reverência que dê graças a Nosso Senhor pela Sua Misericórdia para comigo, pois que Vossa Reverência bem conhece toda a minha miséria…

Um dia, durante a doença, eu rezava depois da Santa Comunhão o Te- Deum. Chegada às palavras: nom horruisti Virginis uterum (… não Te repugnou entrar no seio da Virgem), Nosso Senhor enchia a minha alma com as mais doces consolações e dizia que, depois de não ter desprezado o seio da Virgem, também não desprezava os corações das virgens, para neles estabelecer a Sua moradia e neles deliciar-se. Depois fazia-me compreender que o Mistério da Encarnação nos trouxe a felicidade de O possuirmos como Esposo. A Santíssima Virgem, escolhida para Sua Mãe, não podia ser Sua Esposa; mas as que Ele escolhe para esposas pertencem de um modo especial à Sua Mãe Santíssima. Não posso explicar tudo o que se passou na minha alma; Nosso Senhor fazia-me saborear as delícias do Seu Coração.

Acontece muitas vezes que alguma palavra, ou dos salmos ou de uma oração, me impressiona a ponto de não poder mais continuar e rezar; fico sob esta impressão e nada mais posso fazer do que entregar-me ao influxo da graça, e, por assim dizer, saborear as delícias o amor Divino. (Não sei se explico bem, mas é-me impossível dizê-lo de outro modo).

Muitas vezes permaneço dias inteiros sob esta impressão. Oh! Como então tudo neste mundo se me afigura vil! Parece-me que não posso viver separada do meu Divino Esposo. Os Seus amplexos trazem-me sempre um desejo, cada vez mais ardente, de sofrer por Ele e renunciar a tudo que não seja Ele.

Muitas vezes Nosso Senhor manifesta-me o desejo de estabelecer Sua morada no meu coração, para nele se refugiar quando o mundo O esquece, e a fim de aí se comprazer a conversar comigo, como Esposo com Esposa.

Já sabe meu Padre, de que maneira sinto muitas vezes presença d’Ele e que, por isso, gozo uma felicidade inexplicável. Há dias Nosso Senhor disse-me que não queria que eu morresse já, porque queria ainda continuar este trato. Assim como não quer que sejam destruídas as Igrejas ou os santuários onde habita, assim também não queria que a minha doença me conduzisse já à morte, porque ainda queria conservar este lugar para moradia Sua.

Quando Lhe perguntei por que me tinha dado este grande desejo de morrer e que Ele mesmo tantas vezes (como por exemplo, no dia em que recebi a Extrema Unção) me havia convidado e chamado às núpcias eternas, se Ele não queria que eu morresse, disse-me que o fizera para inflamar o meu amor e o meu desejo de me unir mais e mais a Ele, e também para me dar, pela lembrança disso, força e coragem para suportar com alegria os meus sofrimentos.

Nosso Senhor prometeu-me também que todas as graças que me havia dado ao visitar frequentemente a minha alma, ficariam reservadas para o tempo em que a morte outra vez se aproximasse, e que essas relações íntimas do Seu Coração Divino com o meu coração então se repetiriam novamente. Também me disse que  achando assim Sua moradia em mim e conversando comigo, não mais se acharia só e isolado neste mundo. Não posso explicar-lhe, meu Padre, quanto este pensamento me consola, nem quanto, também eu, me senti indigna e miserável. Desejo tanto corresponder aos desejos de Nosso Senhor, mas estou tão cheia de pecados e misérias! Se eu soubesse amá-LO mais!…

Esquecia-me de dizer que, muitas vezes, Nosso Senhor faz-me sofrer por algum motivo particular, como ultimamente durante o Retiro de Braga. Perdoe-me V. ª Rev.ª Se o fatiguei, mas a minha fraqueza é tão grande que não posso caminhar só, por esta estrada. Sabe-o bem V.ª Rev.ª, e espero que tenha piedade de mim…

 

2- “Ora por palavras, ora por símbolos”

Carta de 20 de Novembro de 1896.

Trad.

 

Meu Reverendo Padre.

 Procurarei agora expor-lhe o que ainda me falta, posto que embora o principal já ficasse dito, na minha carta de ontem.

Disse-lhe ultimamente que Nosso Senhor me dava com freqüência instruções, ora por palavras, ora por símbolos; quer por impressões vivas, quer por imagens interiores.

Uma vez, durante a doença, estando eu muito incomodada e prostrada, mostrou-me um grande jardim, de que Ele era o dono. Explicou-me que as grandes árvores, as palmeiras, etc. São nesses jardins: os Papas, os Bispos, Padres, Missionários; e depois, fazendo-me entrar mais para dentro, deu-me a entender que num canto recôndito desse jardim estava uma florinha sem nenhuma aparência; mas que Ele, o dono do jardim, tinha prazer muito particular em ver e visitar essa flor, que só estava ali para Ele e a fim de que Ele, na Sua misericórdia infinita, se regozije com isso. Fez-me compreender que eu era essa flor e que Ele se comprazia em verme assim reduzida a um estado de miséria e fraqueza, sem nada mais poder que manter-me tranquilamente sob o Seu olhar, devendo eu achar força e coragem para tudo sofrer com alegria.

Depois fez-me compreender também que tinha horas fixas para fazer a Sua visita: o momento da Santa Comunhão; mas que, além disso, fazia visitas inesperadas; momentos que só Ele conhece, em que me faz sentir o Seu amor e a Sua presença, de modo ainda mais suave do que de costume, quando se inclina para mim e mergulha o meu coração num oceano de felicidade.

Às vezes esses momentos enchem-me de tal consolação, que chega a diminuir-me até as forças físicas. Oh! Sim, então compreende-se que é preciso morrer inteiramente para possuir este Bem Supremo, e que só a morte nos pode levar à plena posse d’Aquele por Quem suspiram nossas almas…

Ás vezes, diz-me ou faz-me conhecer algo para outras pessoas. Eu não sei se o devo dizer e custa-me sempre fazê-lo.

Alguns dias atrás explicou-me como eu devia entender as palavras do Cântico dos Cânticos, que fala da pomba que faz o seu ninho na fenda do rochedo (não sei o texto em vernáculo). A esposa é a pomba; o rochedo o Seu Divino Coração, ao qual chama rochedo, a fim de mostrar que para nele entrar é preciso: renúncia, abnegação, humilhações, mortificações, sofrimentos. O ninho no rochedo em que a pomba põe os seus ovos significa que a alma deve unir todas as suas orações, sacrifícios e boas obras aos méritos de Nosso Senhor, para deste modo os tomar férteis pelo Seu Divino Coração. Depois disse que por, todas as razões, chama rochedo ao Seu Coração; mas que, na verdade, Ele é oceano de amor, misericórdia e bondade…

 

3-Exigências divinas

Da carta de 21 de Novembro de 1896.

Trad.

 

(Eu teria desejado tanto ser libertada do cargo de superiora)

 

Eu desejava tanto ser dispensada do cargo de superiora! Isso até me deu tentações de desânimo, tristeza e falta de resignação à vontade de Deus, mas Nosso Senhor ajudou-me a vencer estas tentações. Contudo sinto ser-me necessário que V.ª Rev.ª me ampare, a fim de que eu leve a minha cruz com alegria, como Nosso Senhor quer.

Nosso Senhor fez-me também compreender que, quando o corpo místico da Santa Igreja exigia socorros para alguma necessidade geral ou particular. Ele enviava muitas vezes sofrimentos corporais, doenças, etc. A algumas de Suas esposas para obter, por esse meio, as graças necessárias.

 

4-A Comunhão e o culto interior do Coração Divino

Da carta de 13 de Dezembro de 1896.

Trad.

 

Um dia, receando muito que V.ª Rev.ª me retirasse a licença de comungar sem estar em jejum, e sentindo grande tristeza porque em tal caso, me seria vedado, por causa do meu estado de doença, receber a Santa Comunhão, falei nisso a Nosso Senhor. Ele disse-me que eu ficasse descansada; que Ele velaria para que me fosse conservada a graça da Santa Comunhão quotidiana e, caso V.ª Rev.ª julgasse não poder continuar a permitir-me comungar sem estar em jejum, antes de eu ter para isso realmente força. Ele me faria recair num estado mais grave, a fim que a licença me fosse dada novamente. V.ª Rev.ª, vê que Nosso Senhor cumpriu a Sua palavra; eu não quis falar-lhe nisto antes, porque bem sabia que Nosso Senhor cumpriria a Sua palavra e parecia-me mais seguro aguardar em silêncio a vossa decisão e o curso das coisas.

Há alguns meses (era já durante a minha doença) que Nosso Senhor me disse quanto Lhe desagradava que na Alemanha, sobretudo nos conventos de Religiosas, se fosse ainda tão severo quanto à comunhão freqüente. Disse-me que fizesse eu o possível para que isso se modificasse, e que, cada vez que desse modo, por minha intervenção, mesmo indireta, eu Lhe abrisse a entrada num coração, Ele me daria um acréscimo de glória eterna. Para seguir este desejo de Nosso Senhor, falei dele numa carta ao Abade beneditino, que deverei ainda aproveitar outras ocasiões para conseguir que o desejo de Nosso Senhor seja realizado.

Uma vez, quando eu recordava a grande bondade com que Nosso Senhor procedia para comigo, não me deixando um só dia perder a Santa Comunhão, ao passo que até santas, por causa de suas doenças, tiveram muitas vezes de se privar de receber todos os dias este Santo Sacramento, Nosso Senhor disse-me que me dispensava este favor para assim mostrar quando o Seu Coração deseja unir-se às almas; que na verdade, muitas vezes, até as santas haviam sido impedidas de comungar todos os dias, porque suas doenças não lhe permitiam ficar em jejum. Mas que, apesar da minha indignidade, Ele queria conceder-me aquela graça para me mostrar a Sua fidelidade de Esposo e perguntava-me que prova mais manifesta do Seu amor me poderia dar ainda e como podia eu ainda duvidar d’Ele.

Uma vez, falando do mesmo assunto, das santas comunhões, Ele disse-me que o Seu desejo fora estabelecer o culto do Seu Divino Coração; mas que atualmente, introduzido este culto exterior pela Sua aparição à bem-aventurada Margarida Maria e espalhado por toda a parte, Ele queria também que este culto interior se estabelecesse cada vez mais interiormente, oferecendo-Lhe seus corações para morada e, para atestar este Seu desejo, Ele continuaria a dar-se-me, apesar de todos os obstáculos aparentes, diariamente na Santa Comunhão.

Uma vez disse-me que eu devia ser apóstola do Seu Divino Coração, mostrando pela minha alegria no sofrimento, a felicidade experimentada pela alma que Lhe está inteiramente unida, e inspirando assim aos outros santos desejos de amar e louvar mais e mais o Seu Divino Coração, aproveitando as ocasiões que se proporcionam para conduzir até Ele os corações.

5- Oração a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro

(pedindo saúde, por obediência ao Confessor)

Da carta de 16 de Maio de 1897.

 

Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, minha boa e terna Mãe, Vós bem sabeis que eu não Vos peço para me dardes a saúde para gozar dela, mas que o meu único desejo é de agradar ao Vosso Divino Filho. Eu Vos peço, pois, que me deis a saúde, se isso for para a maior glória de Deus, a salvação das almas e o bem da minha pobre alma. Meu doce Jesus, eu Vos ofereço o meu coração, a fim de não amar senão a Vós. Eu Vos ofereço a minha vontade, a minha vida e todo o meu ser. Meu Divino Esposo, não recuseis esta Vossa indigna esposa, que não deseja senão ser uma vítima do Vosso Amor. Aceitai o sacrifício que eu Vos renovo hoje em reparação de tantas ofensas cometidas contra Vós, principalmente daqueles que mais afligem o Vosso Divino Coração: Tende misericórdia, ó Jesus, dos pobres pecadores.

No princípio desta novena coloco-me nas Vossas mãos, não desejo nem saúde, nem doença, nem morte; desejo apenas amar-Vos e sofrer por Vós e conVosco sem outra recompensa do que a de Vos agradar, servir, glorificar e amar.

 

6- Atitude perante as revelações

Da carta de 5 de Junho de 1897

 

Sempre estou com medo de estar enganada e de enganar o meu Diretor, e por isso muitas vezes parece-me impossível dizer as coisas. Lembro-me das contas que um dia eu hei-de dar a Deus, se realmente eu me deixar ir pelas imaginações ou lhe ter contado o que é artifício do demônio. Sinto tanto o peso dos meus pecados e a minha grande miséria, que me parece impossível Nosso Senhor dar-me tantas graças ainda mais que, com o meu gênio que não sei mortificar, estou a escandalizar as Irmãs. Será orgulho eu sempre tornar a pensar que estou enganada, embora V.ª Rev.ª me diga o contrário? V.ª Rev.ª bem sabe que estou cheia de orgulho e de amor próprio, e isso, muitas vezes, também me faz tremer.

Hoje já estava a pensar que seria orgulho de eu falar no assunto que ontem lhe contei, e de me meter nestas coisas que tratem da Santa Igreja. Mas, examinando-me diante de Nosso Senhor, posso dizer que eu só falei nisso para sossegar a minha consciência e para ficar livre de responsabilidades, pois sentia uma repugnância muito grande em lhe comunicar aquilo que tantas vezes pedi a Nosso Senhor para não o exigir de mim. A lembrança de que os meus segredos devem participar-se a mais alguém é para mim um motivo dos maiores sofrimentos… Mas sempre estou pronta a fazer tudo o que V.ª Rev.ª me mandar, embora me custe.

Agora, tenho-lhe dito tudo o que sinto na minha consciência, peço-lhe humildemente para perdoar as minhas faltas e não me deixar só; pois é apenas na obediência que eu encontro sossego.

7- Sofrimento e apostolado

Da carta de 23 de Junho de 1897

Trad.

 

Sexta-feira depois da festa, à Comunhão, Nosso Senhor disse-me: “Conto-te no número das minhas mais amadas esposas. Não por causa dos teus méritos, mas por predileção e amor muito especial da minha parte”.

Depois disse-me que os sofrimentos eram um meio (de realizar) esta união com Ele. Que eu nunca mais andaria, mas que Ele me restituiria força bastante para me sentar, quando a Sua glória ou o bem da casa o exigissem; que a casa e a minha missão aqui, tanto no interior como lá fora, não seriam prejudicadas pelo prolongamento da minha doença, mas que Ele manteria a doença para assim me tornar dobradamente pesados os trabalhos e para aumentar os meus sofrimentos.

“Podes sarar, se tu renunciares aos meus doces amplexos que são condicionados pelos sofrimentos.”

Respondi que não, que só desejava o Seu amor e que nenhuma outra recompensa pedia senão fazer a Sua Santa vontade e agradar-Lhe, sofrendo por Ele.

Disse-me ainda: “Fica sabendo, minha filha, que da caridade do Meu Coração quero fazer descer torrentes de graças através do teu coração para dentro do coração dos outros. É esta a razão porque hão-de dirigir-se com confiança a ti; não são as tuas qualidades, mas sou Eu mesmo a causa disso. Nunca ninguém, que se encontrar contigo se afastará sem que a sua alma seja de qualquer maneira consolada, aliviada ou santificada, ou sem haver recebido alguma graça, nem até o mais endurecido pecador, dele depende aproveitar-se desta graça”.

Custa-me dizer isto a V.ª Rev.ª, como decerto bem atende. Queria guardar este segredo no meu coração, mas V.ª Rev.ª também conhece as ordens de Nosso Senhor, e o desejo que Ele tem que V.ª Rev.ª seja o confidente de nossos segredos. Peça a Nosso Senhor por mim, pois sabe toda a minha miséria e quanto sou infiel e ingrata a Nosso Senhor.

Humildemente peço a V.ª Rev.ª que não me deixe. Preciso cada vez mais dos seus conselhos, porque também sinto cada vez mais o peso dos meus pecados e a minha grande miséria, na proporção em que Nosso Senhor aumenta as provas do Seu amor e da Sua misericórdia. Se nas coisas que eu lhe expliquei hoje encontra alguma coisa que não lhe parece bem, ou que não é de Nosso Senhor, peço-lhe que me diga, a fim de eu não pensar mais nisso. V.ª Rev.ª sabe que eu estou como uma cega e que confio inteiramente nas suas luzes e na sua direção.

Peço-lhe desculpa do trabalho que lhe dou que reze por mim e que me abençoe, a sua obediente e muito grata filha.

 

 

8- Graças especialíssimas

Da carta de 25 de Junho de 1897

(Festa do S. Coração de Jesus)

Trad.

 

Nosso Senhor, depois da Comunhão, disse-me que hoje me escolhia novamente para esposa bem amada do Seu Coração e punha os tesouros do Seu Coração à minha disposição. Que eu devia rezar muito pela santa Igreja, pelo mundo inteiro, mas, sobretudo pelas almas às quais Ele queria fazer chegar graças por meu intermédio.

Depois disse-me: “… Dou-te estas graças, porque quero que cada vez mais te desapegues de ti mesma, te tornes cada vez mais humilde e mais pequena a teus próprios olhos e porque quero unir-te, cada vez, mais e mais a Mim. Conto-te no número das minhas mais escolhidas esposas, e os meus olhos pousaram em ti por causa da tua grande fraqueza e miséria, que mais ainda faz brilhar o Meu amor.

Como um pai ou uma mãe sentem amor muito particular por um Filho doente, assim Eu, para manifestar a caridade do Meu Coração, te escolhi apesar da tua miséria.

A união entre mim e a esposa aumenta sempre.

Hoje desejo tornar, por um novo grau, ainda mais íntima esta união. Estou unido a cada alma que se acha em estado de graça, mas escolhi algumas em particular para Me unir a elas de modo especialíssimo. Esta união é tão sublime e tão íntima, que só se lhe avantaja a união entre as três Pessoas da Santíssima Trindade. Esta união é a imagem de união da caridade que existe de Meu Pai e Mim com o Espírito Santo. (Aqui, Nosso Senhor fez-me compreender segredos que eu nunca tinha conhecido, e encheu-me de Suas graças de união e amor, de modo inexplicável).

 

9- Desejo de sofrer por Cristo

Da carta de 10 de Julho de 1897

 

Tenho um ardente desejo de sofrer por Nosso Senhor. V.ª Rev.ª sabe isto, e por isso basta que lhe lembre de novo há quantos anos eu já suspirava por sofrer tanto quanto podia, e como Nosso Senhor me chamava sempre mais e mais por este caminho. Só depois de eu ficar doente e de ter sofrimentos de toda a ordem, é que eu me sinto no estado em que Nosso Senhor me queria e encontrei a paz da minha alma. V.ª Rev.ª é o único que sabe até que grau eu me sinto feliz nos grandes sofrimentos, porque assim posso ser uma vítima por Nosso Senhor, e a minha vida é mais semelhante à vida d’Ele. A felicidade de ser assim uma companheira de Nosso Senhor e de me unir sempre mais com o meu Divino Esposo e consolar o Seu Divino Coração é tão grande que só a felicidade do céu pode ser maior.

 

10- Auxílio divino nas tentações

Da carta de 13 de Agosto

(sic, por Julho) de 1897

Trad. Parcial

 

V.ª Rev.ª sabe que tenho tido muitas tentações que muito me afligiram. Um dia, depois da Sagrada Comunhão, falei desta minha aflição com Nosso Senhor. Ele respondeu-me que visto haver-me escolhido como vítima para a reparação de certos pecados, etc. Eu devia estar pronta a sofrer estas espécies de tentações. Que Ele estava comigo; e até, se desse ao demônio certo poder sobre mim, eu não devia recear, que Ele não me abandonaria.

 

 

11- O sacrifício e a fecundidade espiritual

Da carta de 23 de Julho de 1897

Trad.

 

Depois da Comunhão Nosso Senhor disse-me: “Pelos teus combates de ontem, o teu sacrifício tornou-se ainda mais agradável aos meus olhos. Quero que sofras sem alívio, sem consolação (natural).

Desenrolo novamente diante dos teus olhos o quadro dos sofrimentos, como também o quadro do Meu amor.

Escolho-te hoje de novo, como vítima, como holocausto para a conversão e reforma (V.ª Rev.ª sabe porquê), e para expiação dos sacrilégios, e dou-te novamente o Meu Coração com todos os Seus tesouros.

A tua divisa deve ser: amor, sacrifício, reparação. Segue firmemente esta divisa. Fiz com que fosse negativa a resposta d’Angers, a fim de dar também ao Vice-Reitor novas luzes para a tua direção. Quis imprimir de novo em ti o cunho de vítima e holocausto. Entrega-te com inteira confiança à sua direção.

Depois Nosso Senhor disse-me que eu não mais andaria, sendo vítima pelas intenções que V.ª Rev.ª conhece, e que eu devia suportar os outros meus sofrimentos pela mesma intenção; mas que, de tempos a tempos, Ele aplicaria os meus sofrimentos pelas necessidades da Santa Igreja, ou por alguma outra intenção ou por algumas almas em particular.

Outro dia Nosso Senhor disse-me que o Seu desejo de se unir às almas que Ele amava era tão grande, que esse desejo O fazia vencer todos os obstáculos. Que era também esse desejo que me havia feito obter de Sua Emci.ª a licença de comungar sem estar em jejum. Há alguns dias fez-me compreender, por uma lição que me deu depois da Sagrada Comunhão, o mistério da virgindade e fecundidade espiritual. Assim como a Santíssima Virgem se tornou Mãe por obra e caridade do Espírito santo e, deste modo, pela fecundidade da Virgindade começou a obra de Redenção, assim também, por obra e caridade do Seu Divino Coração, a Virgindade continua, e torna fecunda a obra da Redenção, e comunica os seus frutos às almas.

Não sei se está bem explicado, mas não posso explicar melhor.

 

12- “Morrer ou sofrer?”

Carta de 15 de Agosto de 1897

Trad.

 

Nosso Senhor perguntou-me, depois da comunhão, se eu desejava morrer ou ainda sofrer; que eu podia escolher, porque isso não Lhe importava.

Eu disse que só Ele e o Seu amor me bastam. Por isso se Ele me deixasse a Sagrada Comunhão quotidiana e a união com Ele, eu estava pronta a sofrer mais por Seu amor, para consolar o Seu Coração, para reparar os sacrilégios e para o bem das almas: que, no entanto, Lhe pedia que não considerasse definitiva a minha resposta, porque queria primeiro submetê-la ao juízo de V.ª Rev.ª.

Nosso Senhor respondeu que esta disposição da minha alma Lhe era agradável, que Ele se dava e novamente se unia a mim, porque eu preferia a Sua glória e Ele à minha própria felicidade, que me daria abundantes graças. Depois disse: “Quero que perseveres sobre a cruz comigo, e que aí acabes os teus dias.” Se por obediência, eu pedisse que dela me livrasse, seria como que uma agradável música para Ele. Que Ele não queria nem podia, senão por minha própria negligência, desfazer a união comigo.

 

 

13- A loucura da Cruz

Da carta de 17 de Agosto de 1897.

Trad.

 

Ato de consagração a Nossa Senhora de Lourdes, em que a Serva de Deus faz, por meio da SS. Virgem, um ato de sacrifício total da sua vida ao Divino Esposo.

Ó Maria, minha terna Mãe, eu me entrego inteiramente a Vós, pelas mãos do meu Diretor e pai espiritual. Consagro-Vos o meu coração e desejo de ser Vossa na vida e na morte.

Sabeis, ó minha Mãe, que o Vosso Divino Filho, na Sua infinita misericórdia, me escolheu, apesar da minha miséria e de meus numerosos pecados, não só para esposa do Seu Divino Coração, mas também para vítima, a fim de O consolar, reparar os sacrilégios, obter graças para o clero português e perdão para os pobres pecadores.

Vós conheceis o meu desejo de corresponder a este apelo do Seu Coração e de sofrer cada vez mais por Seu amor. É hoje, pois que venho representada pelo meu confessor, oferecer por Vossas mãos o sacrifício total de mim mesma ao Divino Esposo.

Renuncio, por minha livre vontade, ao desejo, e até a esperança, de sarar; tomo sobre mim a cruz de uma longa e dolorosa doença. Aceito uma vida de sofrimentos e sacrifícios, e só desejo imolar-me e consumir-me pelo sofrimento.

Não tenho outro desejo senão consolar desse modo o Coração Divino de Jesus, sofrer por Ele e com Ele, unicamente para Lhe agradar. Desejo ser uma vítima do Seu amor, participar dos Seus sofrimentos e tornar-me semelhante a Ele. Mas, conhecendo a minha fraqueza, peço-Vos, ó Virgem santa e Imaculada, que me cobrais com a Vossa maternal proteção e peçais ao Vosso Divino Filho todas as graças de que preciso para perseverar. Ajudai-me a completar o meu sacrifício, vencer a fraqueza e repugnância da minha natureza e de acabar sobre a cruz.

Recomendo-Vos todos os dias que ainda tenha de vida e, sobretudo a hora da minha morte, que desejo tão ardentemente, porque ela me há-de unir, assim o espero, para sempre, ao meu Divino Esposo e a Vós.

Estou pronta a trabalhar para a glória de Deus e a salvação das almas, enquanto a santa vontade de Deus o quiser, e peço-Vos, ó minha boa Mãe, que abençoeis a vossa pobre filha, que abençoeis a nossa casa e todas as pessoas entregues aos meus cuidados, a fim de que todas perseverem na graça, ou a recuperem se a perderam, e um dia possamos todos unir-nos em torno de Vós, para Vos louvar e para Vos bendizer por toda a eternidade.

 

 

14- Sofrer para evitar escândalo

Da carta de 29 de Outubro de 1897

 

Ontem, depois da Sagrada Comunhão, Nosso Senhor disse-me que eu já tinha sofrido muito, mas que devia sofrer ainda mais; que eu devia sofrer com muita alegria e, como Ele me tinha escolhido para vítima, devia evitar tanto quanto possível, não somente os pecados, mas também as imperfeições, as impaciências, etc. E estar sempre alegre e contente no meio dos sofrimentos. Que devia, no próximo tempo, sofrer por uma intenção particular que diz respeito ao Bispado do…, e que por enquanto só estava conhecida por Ele. Que se preparava alguma coisa que provocaria um grande mal, escândalo para muitas almas etc; mas que podia ainda remediar-se, sofrendo e rezando. Como Nosso Senhor dizia que esta intenção era conhecida somente por Ele, até agora eu estava com dúvida, se eu podia falar disso a V.ª Rev.ª e perguntei a Nosso Senhor. Ele disse: “a ele tu podes e deves dizer tudo”.

 

15- Convite para as núpcias eternas

Da carta de 6 de Janeiro de 1898.

Trad.

 

Nosso Senhor disse-me, depois da Sagrada Comunhão, que me tinha concedido ainda este ano de vida, para poder um dia no Céu unir-se para sempre mais estreitamente a mim; que, se eu tivesse morrido o ano passado, a união não teria sido ainda tão estreita, que já nesta vida Ele queria aumentar e continuar ainda esta união; que eu não devia mais viver senão n’Ele e para Ele, nem ver senão Ele nem procurar senão a Ele; que, para significar esta nova união, Ele me havia feito ver, no ano passado, o convite para as núpcias, o que eu havia tomado como convite para ir para o Céu, mas que Ele entendia ser convite para mais íntima união com Ele, como Esposo e eu como esposa ainda neste mundo, que o número de almas com as quais Ele pode unir-se tão estreitamente, é pequeno, mas que Ele me elegeu para tal união de um modo muito especial; que para corresponder a este apelo devo combater o meu orgulho, ser franca com V.ª Rev.ª e evitar todo o pecado tanto quanto possível.

 

 

16-A Eucaristia, vida da alma

2º feira do carnaval de 1898.

 Trad.

 

Segunda-feira do Carnaval pedi que me levassem à capela das 5, 30-7, 30. Nosso Senhor disse-me que me pagaria a visita com graças especiais durante a oração da noite, e com uma visita rica de graças no dia seguinte. De noite Nosso Senhor inspirou-me o desejo de fazer o voto de obediência com respeito ao aparelho. Renovei-Lhe o sacrifício de mim mesma e exprimi-Lhe o desejo de fazer o voto, se o meu confessor o permitisse.

Terça-feira depois da Sagrada Comunhão, Nosso Senhor disse-me: “Até agora a Sagrada Comunhão tem sido a tua vida. Procura continuar assim”. Depois disse que Ele se me dava de novo e se unia mais e mais a mim.

Depois prometeu-me que tudo quanto Lhe pedisse na santa Eucaristia mo daria, se fosse para glória de Deus e bem das almas; que, portanto, eu devia ter para com o SS. Sacramento um amor ardente, uma devoção profunda e uma confiança ilimitada. E continuou: “O SS. Sacramento é a vida da tua vida. Dou-me a ti todos os dias com o Meu Corpo e Meu Sangue, até que Eu na hora da tua morte me darei a ti com a abundância do Meu Amor durante toda a eternidade”.

 

 

17- Diante do SS. Sacramento

3º feira do Carnaval de 1898.

Trad.

 

Na 3º feira do Carnaval passei umas horas diante do Santíssimo e na união mais íntima com o meu Divino Esposo. Era uma tarde toda de amor. Pedi pela conversão dos pecadores com o maior fervor, e ofereci-me com todos os afetos do meu coração ao Divino Coração de Jesus em expiação e reparação dos crimes cometidos neste dia. Senti-me tão abrasada com o Seu Divino amor e com santos desejos!

Nosso Senhor, na Sua infinita Misericórdia, uniu-se cada vez mais a mim e sem se lembrar da minha miséria e ingratidão, disse-me num excesso do Seu amor: “Se Eu ainda não tivesse instituído a Santíssima Eucaristia, fá-lo-ía agora por causa de ti, tão grande é o Meu desejo de morar no teu coração e de encontrar nele consolação no meio de tantas ofensas cometidas no mundo”.

Não posso explicar o que se passou em mim! Depois pedi a Nosso Senhor que como prova que era Ele que assim me falava, me tirasse uma falta de caridade que eu sentia contra algumas pessoas no meu coração, e que eu não podia vencer. No mesmo instante senti o meu coração como transformado e livre dessa repugnância que me causava escrúpulos.

Quando chegou a hora de encerrar, eu dizia a Nosso Senhor quanta pena eu sentia por Ele já não ficas mais tempo conosco. Ele consolou-me e disse-me: “Ficarei contigo com a eficácia da minha Paixão para abrasar o teu amor, sustentar a tua fraqueza, dilatar o teu coração, confortar-te nos teus sofrimentos”. Depois, deu-me a conhecer que neste tempo desejava que eu me lembrasse ainda mais do que nos anos passados da Sua SS. Paixão.

 

 

18- Voto de renúncia e de obediência

Da carta de 26 de Fevereiro de 1898

 

Envio-lhe a carta ainda hoje para que V.ª Rev.ª possa neste dia em que a Santa Igreja celebra a festa da SS. Coroa de Espinhos, oferecer-me inteiramente ao meu Divino Esposo.

Estando a Serva de Deus prostrada no leito com uma grave mielite, havia mais de 2 anos, e afirmando os médicos  que seria útil lhe fosse aplicado um aparelho de gesso, mas sentindo ela grande repugnância para usar este remédio extraordinário, quis fazer voto de completa obediência ao seu Confessor sobre essa matéria.

 

  1. J e M.

Meu Jesus e meu Deus, hoje, na festa da Vossa SS. Coroa de Espinhos, que tão cruelmente tem coroado a Vossa SS. Cabeça, em honra da Vossa SS. Paixão e em união íntima conVosco, meu Divino Esposo, e por Vosso amor, sujeito-me voluntariamente e plenamente a todas as ordens, desejos e inclinações do Rmº Snr. Vice-Reitor, meu Diretor e Pai espiritual, que dizem respeito ao aparelho, fazendo, para este fim, nas mãos deste mesmo meu Pai espiritual o voto de obediência.

Assim sacrifico e ofereço a Vós, meu Divino Esposo, a minha liberdade, a minha vontade, os meus desejos, as minhas repugnâncias, os meus sofrimentos, a minha vida. Não tenho outras intenções senão amar-Vos, servir-Vos, e ser uma vítima completa do Vosso amor.

Sujeito-me de todo o meu coração e voluntariamente, ao prolongamento dos meus sofrimentos, da minha vida e do meu exílio neste vale de lágrimas; não recuso os trabalhos, as privações, as dores e humilhações, e sacrifico por mais algum tempo a felicidade de Vos ver e de me unir eternamente a Vós, ó meu único Bem, por Quem eu tanto suspiro, se isso é para Vossa maior glória e bem das almas.

Não Vos peço outra recompensa senão a de sofrer por Vosso amor e em união conVosco, para consolar o Vosso Divino Coração de Quem eu sou esposa.

Aumentai o Vosso Divino amor no meu pobre coração. Sustentai a minha fraqueza e perdoai os meus pecados, para que eu, assim purificada e abrasada cada vez mais pelas chamas do Vosso amor, seja a Vossa vítima e companheira no tempo, e Vossa esposa nunc et semper et in saecula saeculorum. Amen.

 

 

19- Os ladrões do Santuário e a Reparação

Da carta de 7 de Abril de 1898.

(Quinta-feira Santa)

 

Nosso Senhor deu-me novamente a conhecer quanto os padres maus que entregam o Seu Santíssimo Corpo e sangue ao demônio, aumentam os Seus sofrimentos; e disse-me para dizer a V.ª Rev.ª, que devia fazer tudo quanto pudesse para retirar X…, do estado sacerdotal, dizendo que exigia isso de si; e, como o anjo que com uma espada impede a entrada no paraíso, assim V.ª Rev.ª, devia impedir com todas as suas forças a entrada dum ladrão no Santuário, que um dia V.ª Rev.ª, devia dar contas desta alma.

Depois Nosso Senhor tornou a convidar-me para sofrer em reparação dos sacrilégios etc; e continuou: “Os guardas de Israel dormem e, para reparar a sua falta de vigilância e de zelo, Eu te chamei à oração, ao sacrifício e aos sofrimentos. Os teus sofrimentos vão aumentar, e tu deves preparar-te para os maiores sofrimentos.”

Nosso Senhor esperou pela minha resposta, abrasou o meu coração com o Seu Divino amor; e eu não pude resistir ao Seu pedido, confiando na Sua Divina graça. Ele apresentou-me dores, perseguições, calúnias, desprezos de todos etc; e depois de eu ter aceitado tudo, disse-me que V.ª Rev.ª, porém, nunca me faltaria.

Depois Ele disse-me que desejava encontrar num coração humano um lugar de repouso e de consolação, pelo amor e pelos sofrimentos e que, sem meu mérito. Ele tinha escolhido o meu coração para isso, que meu coração devia ser um altar aonde tudo se consumisse nas chamas ardentes do Seu Divino amor.

Não posso explicar o que se passou em mim. Sentia-me cada vez mais abrasada do amor Divino! Não podia produzir outros atos senão ato de amor.

 

 

20- Ânsia de maior perfeição

Da carta de 13 de Junho de 1898.

 

Quanto a meus pecados e muitos defeitos, V.ª Rev.ª, sabe tudo e, neste ponto, nunca lhe escondi nada. Mas quanto às graças que Nosso Senhor me deu, talvez não tenha tido a franqueza necessária, ou não expliquei bem.

O que me faz peso é ver que Nosso Senhor exige mais de mim do que V.ª Rev.ª; e, sendo eu fraca e tendo muitas inclinações para o mal, como sabe, receio não corresponder à graça sem V.ª Rev.ª me auxiliar.

Para V.ª Rev.ª saber bem o que Nosso Senhor exige de mim e as graças que Ele me concede; e para conhecer melhor ainda a minha tibieza e falta de generosidade, resolvi expor-lhe três coisas:

1ª – Já muitos anos antes de entrar no convento senti que Nosso Senhor exigia de mim que eu não tivesse outra ambição senão o Seu Divino amor, sacrificando-me e fazendo tudo por um único motivo: agradar-Lhe sem pensar na recompensa. E isso vai aumentando sempre mais. Mas sinto que, para corresponder a isto, necessito de auxílio de V.ª Rev.ª e de  ter a maior franqueza consigo.

Conheço muito bem que, chamar-me a este exercício, foi uma das maiores graças que Nosso Senhor me concedeu. Foi ela que me sustentou nas horríveis tentações do Noviciado e, depois, e que me sustentou nos trabalhos e contradições do primeiro tempo aqui, assim como nos sofrimentos dos últimos dois anos, que são cada vez maiores, não somente com o aumento, mas com o prolongamento da doença. Mas também conheço a minha falta de generosidade para aproveitar as graças e para aumentar em mim o fogo do Divino amor. Parece-me que, se eu disser a V.ª Rev.ª com mais franqueza o que se passa na minha alma, e se o meu bom Padre me ajudar mais alguma coisa, eu adiantarei mais. Peço-lhe que me ajude para eu ter esta franqueza completa.

2ª Nosso Senhor tem-me aumentado cada vez mais o desejo de amá-Lo, sem eu, porém, corresponder a esta graça como devia, e deu-me o desejo ardente de unir-me sempre mais e mais com Ele.

Os melhores e mais seguros meios para chegar a esta união íntima, não são a Eucaristia, os sofrimentos e a morte, que quebra os últimos obstáculos à união perfeita e eterna?

V.ª Rev.ª, sabe pouco mais ou menos o que a Santa Eucaristia tem sido para mim, e quantas graças eu recebi de Nosso Senhor no SS. Sacramento. Bem queria, às vezes, dizer-lhe mais e abrir-lhe o meu coração ainda mais completamente, mas muitas vezes receio fatigar V.ª Rev.ª e, muitas vezes, a maneira tão reservada como me dirige fecha-me a boca. E assim julgo que me privo de muitas graças porque V.ª Rev.ª me ensinaria à melhor me aproveitar delas.

Quanto aos sofrimentos, disse-lhe muitas vezes que encontro neles a minha felicidade; e, na verdade, sinto-me feliz por poder unir-me assim mais e mais ao meu Divino Esposo. Um só instante de união com Ele vale bem (mais que) os maiores sofrimentos.

Ah! Meu Padre, quem me dera explicar-lhe bem a felicidade que eu encontro nos sofrimentos. É isso que me consola quando o meu exílio está cada vez mais prolongado. Acerca disso também seria bom eu falar-lhe às vezes com mais fraqueza, mas sinto-me acanhada. Muitas vezes desejava que V.ª Rev.ª me perguntasse qualquer coisa. Assim já teria mais coragem para falar. O que eu sinto ao lembrar-me da morte, V.ª Rev.ª o sabe, pois administrou-me o Sagrado Viático e a Santa Unção, e parece-me que, nesse dia, V.ª Rev.ª, sentia tudo o que se passava em mim, não é verdade?

Só a felicidade do Céu pode ser maior do que a felicidade duma alma que está perto a unir-se com o seu Divino Esposo e único Bem, por Quem tanto suspira! Mas, como Nosso Senhor queria ainda prolongar a minha vida, não recusei trabalhar por mais algum tempo pela glória d’Ele e bem das almas, ficando-me então a Santíssima Eucaristia e os sofrimentos, e podendo eu aumentar mais no Seu Divino amor. Mas preciso que V.ª Rev.ª me ajude, para eu sofrer sempre com alegria e paz, e para não perder a força e a coragem na grande prolongação da doença. Até agora sempre me tem ajudado, e nunca lhe posso agradecer como devia, mas peço-lhe que continue.

3ª – V.ª Rev.ª sabe que Nosso Senhor, na oração, me deu, muitas vezes, grandes graças que não merecia. Porém, ao menos essas graças fazem-me conhecer cada vez mais o meu nada e a minha miséria, bem como a misericórdia de Nosso Senhor.

É-me impossível dizer a V.ª Rev.ª quanto a minha alma suspira pela união com o meu Divino Esposo e com que força me sinto impelida, sobretudo quando o Santíssimo Sacramento está exposto, a mergulhar-me neste oceano de graças,consolações e caridade. E se, de tempos em tempos, Nosso Senhor, na Sua infinita misericórdia, se inclina para a minha miséria e me faz sentir Seus doces amplexos e me enche do Seu amor; Oh! Meu Padre, então faltam-me palavras para exprimir o que se passa em mim. As horas parecem instantes, e até o corpo não sente a sua fraqueza. Toda inebriada pela união com o meu Divino Esposo, nada mais posso que exprimir atos de desejo, admiração e caridade, ou repousar nesta união com Ele. E se já a lembrança desses felizes momentos me enche de ventura e reconhecimento, que deverei dizer desses próprios momentos?

V.ª Rev.ª compreenderá o meu desejo de poder ficar, às vezes, à vontade diante do Santíssimo Sacramento, quando tenho tão pleno o coração e tanta sede na minha alma.

Muitas vezes, nesses felizes momentos, Nosso Senhor favoreceu-me com aquelas práticas que já lhe contei; porém, muitas vezes, também só posso amar e gozar da Sua presença e fazer-me penetrar pelo fogo da Sua Caridade conforme Ele mesmo me impele.

Receita V.ª Rev.ª que a oração me prejudique a saúde. Se fossem longas orações vocais ou meditações forçadas, eu não poderia fazê-las; porém, a oração que acabo de falar-lhe, nem sequer me faz sentir cansaço; Todas as minhas forças são arrastadas pela força do Divino amor.

Nesta união com Nosso Senhor encontro a minha única felicidade e a força necessária, tanto física como moral, para recomeçar sempre de novo a viver, e para sofrer e trabalhar.

Eu queria falar tudo isso com V.ª Rev.ª. Agora já sabe o que tinha a dizer-lhe.

 

 

21- Um templo ao Sagrado Coração de Jesus

5 de Agosto de 1898.

(1ª Sexta-feira do mês)

 

Persuadida a Serva de Deus de que Nosso Senhor lhe significara que queria que fosse ereta no Bom Pastor do Porto um templo que fosse lugar de desagravo ou reparação, e desejando que esta Igreja fosse dedicada ao Divino Coração de Jesus, compôs a seguinte fervorosa oração.

Oração dedicatória.

Hoje, dia 5 de Agosto (de 1898), a primeira sexta-feira do mês, para honra glória e consolação do Santíssimo Coração de Jesus; em reparação e desagravo principalmente dos sacrilégios; para atrair graças especiais para a Diocese, sobre esta casa e todas as pessoas que a ela pertencem, ou que de qualquer forma estão em relação com ela, tanto no presente como no futuro; e para aumentar o culto do Sagrado Coração de Jesus, resolvo e prometo, tanto quanto de mim depende, dedicar a Nossa Igreja a este mesmo Divino Coração.

Confio esta obra à proteção da Imaculada e sempre Virgem Maria, a seu Esposo S. José e aos primeiros discípulos do Sagrado Coração: S. João Evangelista e St.ª Gertrudes.

Sinto no fundo da minha alma que sou digna duma obra tão santa e tão grande, mas espero da infinita misericórdia de Deus a graça de a poder realizar. Não receio trabalhos, nem sofrimentos, nem sacrifícios, e entrego-me novamente e sem reserva, ao meu Divino Esposo, desejando ser uma vítima do Seu amor até a morte.

No caso de morrer antes de se fazer a Igreja, peço as minhas queridas filhas espirituais que se lembrem deste meu desejo acima mencionado e que cumpram a promessa que eu hoje faço, para assim corresponder ao desejo de Nosso Senhor e consolar o Seu Divino Coração. E se depois da minha morte lerem isto, peço-lhes que rezem por mim.

Peço a meu Pai espiritual que abençoe esta minha resolução e promessa, e que me ajude a realizá-la.

 

 

22- “A melhor parte”

Da carta de 31 de Agosto de 1898

 

No mês passado, como V.ª Rev.ª sabe, eu estava bastante fria e negligente. Em conseqüência disso, senti-me muito longe de Nosso Senhor. Pedi-Lhe perdão e disse-Lhe que senti muito Ele estar longe de mim.

Nosso Senhor respondeu que se retirou de mim; primeiro para experimentar o amor que eu Lhe tinha, e para ver se mesmo assim, eu Lhe ficaria fiel; segundo para castigar a minha frieza, pois eu tinha tempo para me lembrar dos outros, mas que para Ele não tinha tempo. Fiquei muito arrependida das minhas negligências, e Nosso Senhor prometeu-me fazer sentir novamente a Sua presença e a Sua união comigo.

No dia da Assunção ao ouvir as palavras Maria optimam partem elegit etc. (Maria escolheu a melhor parte, etc.) Nosso Senhor disse-me, aplicando estas palavras a mim: que esta melhor parte era Ele, meu Esposo, meu Deus, meu Senhor, meu Salvador, e que, como penhor de que esta parte não me seria tirada, me dava o Seu Coração. Estas palavras de Nosso Senhor deixaram-me com o coração cheio de consolação, de paz e de gratidão.

 

 

23- Sobre o voto de obediência

Da carta de 1 de Novembro de 1898

 

Não posso deixar de acabar o dia de hoje, dia tão abençoado para a minha vida espiritual, sem lhe escrever.

Como V.ª Rev.ª tinha marcado o dia de hoje para eu fazer o voto, preparei-me desde a comunhão até a benção; e, como a sua resposta não tinha chegado, fiz à benção o voto conforme a fórmula, com a condição de que V.ª Rev.ª assim o aprovasse.

Não lhe posso explicar o que se passou nestes momentos felizes da minha alma. Senti-me tão unida a Nosso Senhor, que a tão grande repugnância que senti, desde a semana santa até o dia que V.ª Rev.ª me deu licença de fazer o voto, desapareceu, tão grande foi à consolação que senti hoje. Foi uma hora de Deus!

Depois que fiz o voto, Nosso Senhor disse-me: “Vem minha esposa, para que Eu te coroe com a coroa dos sofrimentos, até que Eu te coroe com a coroa da glória. Digo-te que te corôo com a coroa dos sofrimentos, para te recompensar do sacrifício que hoje me fazes de ti mesma, da tua liberdade, da tua vontade, porque sei que nada desejas tanto como sofrer por meu amor e seres crucificada comigo.”

Tudo isso se passou enquanto as Irmãs cantavam o Magnificat e Tantum Ergo.

À benção, senti como Nosso Senhor me escondeu no Seu Santíssimo Coração e me concedeu as graças necessárias para cumprir o meu voto. E apenas tinha recebido a benção do meu Divino Esposo, recebi a sua carta com a sua benção paternal! Parecia mesmo providencial: tinha oferecido a devoção do mês do Rosário para obter a graça de fazer o voto, se fosse da vontade de Deus; e à última hora, à benção final, os meus desejos e as minhas orações foram ouvidas.

 

 

24-Missão e consagração

Da carta de 20 de Novembro de 1898

 

Nosso Senhor disse-me hoje que era a vontade d’Ele que eu continuasse o exercício da oração como nestes dias, e que eu devia dizer isto a V.ª Rev.ª, que devia pedir que me deixasse continuar até ao dia 8 de Dezembro, que Ele mostraria ser isto a vontade d’Ele, dando-me força para não faltar, um só dia, a este exercício (a oração demorada). E que depois do dia 8, V.ª Rev.ª devia decidir se devia continuar assim.

Duvidei um pouco poder continuar, mas Nosso Senhor disse: “A minha força não é maior que a tua fraqueza?”.

Eu então entendi que Ele me sustentaria para poder o que nem as minhas forças físicas nem morais me permitiriam.

Ele disse-me também, (e isso em relação à devoção ao Seu Sagrado Coração) que por este meio da oração Ele queria preparar-me para ser cada vez mais um instrumento nas Suas mãos. Depois disse-me que deseja aumentar a Sua união íntima comigo.

No fim, disse que V.ª Rev.ª e eu devíamos fazer hoje, juntos, a consagração ao Seu Divino Coração, e que devíamos entregar-nos a Ele para Ele dispor de nós segundo o Seu agrado.

 

 

25- Leão XIII. A doença dele

Da carta de 2/3 Dezembro de 1898.

 

Prolongou a vida do Santo Padre para lhe conceder ainda aquela graça (da consagração ao Divino Coração de Jesus). Depois de ter feito isso, ele deve preparar-se para dar contas a Deus. “No Meu Coração encontrará a consolação das negligências do seu Pontificado, e a reparação dos seus defeitos, seu refúgio seguro na morte e no juízo”.

Conservei sempre algumas esperanças de, pelo menos, chegar a sentar-me, tanto mais que me contaram dum remédio que fez andar um doente que já não se mexia na cama.

Perguntei a Nosso Senhor e Ele disse-me que nunca mais me devia sentar; que podia experimentar o remédio, se o Snr. Vice-Reitor mo mandasse, mas que só serviria para mostrar que é a vontade d’Ele eu já não chegar a sentar-me e de eu ficar crucificada; que pouco a pouco iria piorando.

Senti, há dias, dores de cabeça tão fortes que me parecia perto de perder o juízo. Conformei-me com a vontade de Deus, mas sempre pedi a Nosso Senhor que me poupasse isso, porque então já não O poderia amar nem comungar. Ele ouvindo as minhas súplicas, disse que devia comungar até ao fim e depois acrescentou: “Minha esposa, tu me amarás sempre, pois inscrevi-te no Meu Coração”.

Prometeu-me que eu não perderia o juízo. Depois veio-me um grande medo que os sofrimentos aumentassem tanto que já não poderia com eles,e então talvez desejasse mesmo perder os sentidos.

Foi uma tentação, e Nosso Senhor consolou-me: “No meio dos teus maiores sofrimentos estarei contigo”.

Esqueceu-me de dizer que Nosso Senhor me tinha dado a conhecer que eu devia sofrer muito.

 

 

26- Sobre a consagração do mundo

Da carta de 7 de Dezembro de 1898.

 

Nosso Senhor tornou-me a falar na consagração do mundo ao Seu Divino Coração; mostrou-me interiormente o Seu Santíssimo Coração como uma luz que devia esclarecer todo o mundo; lembrou-me as palavras da 3ª missa do Natal: qui hodie descendit lux magna super terram (hoje brilhou uma grande luz sobre a terra); fez-me conhecer a relação que estas palavras tinham com esse novo esplendor que Ele quer que se dê ao culto do Seu Divino Coração, e disse: “No esplendor desta luz, os povos e as nações serão iluminadas, e, no seu ardor, eles ficarão aquecidos”.

O Coração de Jesus parecia-me um sol, e os Seus raios iam-se dilatando cada vez mais para abrasar e iluminar o mundo inteiro. Depois Ele disse-me que era a Sua vontade que tornasse a escrever para Roma.

Respondi a Nosso Senhor que, a última vez, a obtenção de consentimento de V.ª Rev.ª me tinha custado tantos sofrimentos, e perguntei se desta vez seria também necessário passar por tantos sofrimentos e chegar à morte para o Snr. Vice-Reitor acreditar. Ele respondeu que não, que desta vez teria o seu consentimento sem dificuldade, e que, mesmo através da facilidade com que me seria dado o consentimento, devia provar que era Ele. Nosso Senhor também me perguntou se estava pronta para aceitar todas as qualidades de sofrimentos, humilhações e desprezos.

 

 

27- Idem. A carta ao Papa

Da carta de 8 de Dezembro de 1898

 

Nosso Senhor disse-me na Sagrada Comunhão, que eu devia ainda hoje, principiar a carta para Roma e, depois, sujeitá-la à decisão de V.ª Rev.ª.

Expliquei a Nosso Senhor a dificuldade que sentia de escrever e explicar tudo; Ele disse-me que não receasse nada, que não seria tanto eu, mas Ele mesmo que iria escrever o que Ele me inspirava, e que devia sentir o Seu auxílio e assim foi. Escrevi com grande facilidade, quase sem parar.

 

 

28- O Ano das Misericórdias do S. Coração

Da carta de 1 de Janeiro de 1899

 

A Serva de Deus prevê, de um modo seguro, que o Papa fará neste ano a Consagração do mundo ao Coração de Jesus.

Principiou o ano das Misericórdias do Divino Coração de Jesus! Não lhe posso exprimir o que sinto ao lembrar-me que este ano foi destinado por Nosso Senhor, para se cumprirem os desejos que Ele manifestou, e que de entre tantos milhões, Nosso Senhor escolheu-nos a ambos para comunicar-nos os segredos do Seu Divino Coração e os desígnios de misericórdia que Ele tem sobre o mundo.

Que podemos fazer? Louvá-Lo e humilhar-nos diante d’Ele! E quando me lembro que foi a V.ª Rev.ª a quem Ele entregou a realização do Seus desejos, (pois de si dependia o sim ou não), sinto o meu coração encher-se de consolação e santa alegria. (…) Que graças abundantes a sua alma vai receber com essa cooperação na realização da consagração!

Peço a V.ª Rev.ª que, por algum tempo, se lembre desta intenção no Santo Sacrifício da Missa. Nosso Senhor, depois lho pagará. E peça também por mim, pois sou tão indigna de tantos favores de Nosso Senhor.

 

 

29- Mais sofrimento

Bilhete de 9 de Fevereiro de 1899

 

Ontem, não tive tempo de pedir-lhe licença de pedir a Nosso Senhor que aumentasse os meus sofrimentos nos dias do Carnaval. Tenho um grande desejo disso!

Peço a V.ª Rev.ª para abençoar a sua muito submissa filha.

 

 

30- Ano de Misericórdia: a primeira graça

Da carta de 17 de Fevereiro de 1899

 

A Sagrada Congregação dos Ritos concedeu à nossa Ordem a mesma licença dada à Ordem da Visitação, de rezar ou cantar em público a ladainha do Coração de Jesus.

V.ª Rev.ª adivinhará o que se passa na minha alma.

Não lhe dizia ao princípio do ano que tinha chegado o ano das misericórdias do Santíssimo Coração de Jesus?

Que grande prova de amor infinito de Nosso Senhor, e que grande graça! Ele nos faça dignos de a receber! Ele nos faça humildes de coração para podermos trabalhar com Ele na salvação das almas.

 

 

31- Leão XIII manifesta a intenção de fazer a Consagração

Da carta de 26 de Março de 1899

 

Encontrei neste instante a notícia seguinte no Mensageiro do Coração de Jesus. “Comuniquemos agora uma notícia que lemos com júbilo na Semaine Religieuse d’Annecy, a saber: o Sumo Pontífice no dia 12 de Fevereiro, na audiência que deu a Monsenhor Isvard, Bispo d’Annecy, exprimiu-lhe a intenção que tinha de, no próximo ano, consagrar todas as dioceses, toda a Igreja e toda a humanidade ao Sagrado Coração de Jesus.”

Exprimir a V.ª Rev.ª o que, ao ler isto, me vai na alma, é impossível! Misericordias Domini in aeternum cantabo (cantarei eternamente as Misericórdias do Senhor)!

Ficamos unidos na oração, meu bom Padre; empreguemos todas as nossas forças para dar glória ao Divino Coração de Jesus e ponhamos n’Ele toda a nossa confiança. Peço-lhe que me ajude a agradecer a este Divino Coração tantas graças recebidas; e que não me poupe, para que eu me torne cada vez mais humilde. À vista de tantos favores recebidos de Nosso Senhor, o abismo da minha miséria, dos meus pecados, da minha indignidade, se faz cada vez mais profundo.

 

 

32- Profecias realizadas

Da carta de 25 e 30 de Março de 1899

 

Nosso Senhor disse-me que V.ª Rev.ª devia cuidar da sua saúde, que Ele o tinha chamado a coisa maior, e que devia poupar-se para a glória de Deus, que um dia devia chegar a ser Bispo… mas que eu já não viveria; que pouco tempo depois da minha morte V.ª Rev.ª seria nomeado Bispo. Duvidei se Nosso Senhor me dizia isto, ou era imaginação minha, mas veio-me aquela certeza interior que me faz confiar tudo n’Ele. V.ª Rev.ª, mais tarde, verá.

…Depois rezei por V.ª Rev.ª, e já recomendei a Nosso Senhor todos aqueles que um dia seriam por V.ª Rev.ª, ordenados Padres, Nosso Senhor disse-me que V.ª Rev.ª, devia, não somente ordenar Padres, mas também um Bispo…

 

 

33- Mais renúncia e mais Reparação

Da carta de 30 de Março de 1899.

(Quinta-feira Santa)

 

Nosso Senhor disse-me que eu devia desprender-me cada vez mais de mim mesma e das criaturas, procurando os sofrimentos em Sua companhia, aproveitando todas as ocasiões e transformando todos aqueles pequenos desgostos e sofrimentos em outros tantos ato de amor. Que eu devia pedir a V.ª Rev.ª para me deixar visitar Nosso Senhor na Capela, mais a miúdo, e, acabando o tempo de voto de obediência que fiz me deixe renová-lo por um ano.

Ele disse-me também que não devia procurar a minha satisfação em nada, oferecendo mesmo o gosto de estar com Ele e os favores que d’Ele recebo para praticar qualquer ato de caridade para com o próximo, apresentando-se a ocasião.

Isso foi à tarde. À Comunhão Ele falou-me nos sofrimentos que Ele passou por se sentir abandonado por todos, pediu-me para Lhe fazer companhia, e depois disse que o que O afligia mais era que, não somente a maior parte dos cristãos, mas também muitos sacerdotes O deixavam só no sofrimento. Que Ele desejava de mim reparação por isso.

Perguntei a Nosso Senhor se eu devia sofrer muito nessa intenção pelos Padres; e Ele disse: “Todos os dias da tua vida, até a morte!”.

 

 

34- Sobre os cadernos autobiográficos

Da carta de 4 de Maio de 1899

 

Como é amanhã a primeira sexta-feira do mês, envio-lhe a primeira parte dos apontamentos que, por ordem de V.ª Rev.ª, escrevi; para V.ª Rev.ª os oferecer ao Divino Coração de Jesus como prova da minha gratidão e do meu amor. Que Ele se digne aceitar aquela oferta com a infinita misericórdia com que sempre me tratou.

Confio, através desses cadernos, os meus mais íntimos segredos, ao meu bom Pai espiritual, que bem sabe quanto eu sou miserável e indigna, de tantos favores da parte do meu Divino Esposo.

Sinto-me profundamente confundida à vista de tantas graças, e só as dou a conhecer a V.ª Rev.ª para que V.ª Rev.ª agradeça, em meu nome, ao Santíssimo Coração de Jesus tanta misericórdia e bondade.

Custou-me escrever tudo isto; mas se Nosso Senhor, na Sua grande misericórdia, quer servir-se destas comunicações a V.ª Rev.ª para talvez, afervorar mais um pouco a sua devoção ao Seu Divino Coração, estão bem recompensados a mortificação e o trabalho.

 

 

35- Última carta (na íntegra).

15 de Maio de 1899.

 

Meu Pai, eu sofro tanto! Peça por mim para me unir cada vez mais ao Divino Coração de Jesus.