“…Um dia, no tempo do Advento, enquanto rezava ao apóstolo e evangelista São João, este lhe apareceu com roupagem amarela, enfeitada com águias de ouro. Esse traje significava que, em sua vida mortal, São João, elevado acima de si mesmo pelos arrebatamentos da contemplação, se esforçava sempre por abaixar-se ao vale da humildade, considerando seu próprio nada. Olhando mais atentamente as vestes do apóstolo, notou um debrum vermelho que cercava levemente as águias de ouro. Essa cor significava que São João, para elevar-se
na contemplação, começava sempre com a lembrança da Paixão do Senhor, de que foi testemunha ocular e que ele havia sentido até o fundo de seu coração, com íntima compaixão. É assim que, elevando-se pouco a pouco, voou até as alturas da divina Majestade e ali fixou, com seu olhar de águia, o centro do verdadeiro sol. Trazia também dois lírios de ouro, um em cada ombro. No direito, estavam milagrosamente gravadas as palavras “O discípulo que Jesus amava” e no esquerdo “Este é o guarda da Virgem”.
Estas indicavam o privilégio que teve, de receber o nome e ser realmente, entre os apóstolos, o discípulo Senhor, que expirava sobre a Cruz, de ter sob sua guarda que Jesus amava e, ademais, de ser julgado digno pelo o puríssimo lírio, isto é, a Virgem Maria.
Tinha igualmente no peito um dístico maravilhoso, para recordar o privilégio que recebeu de, na santa Ceia, repousar no dulcíssimo seio de Jesus. Liam-se nele estas palavras, gravadas em letras de ouro brilhante: In principio erat Verbum, o que indica a força cheia de vida das palavras sublimes com que começa seu Evangelho. Gertrudes disse então ao Senhor:
– Por que, ó Senhor, apresentais vosso discípulo dileto a mim, que sou tão indigna?
– A fim de estabelecer entre vós uma amizade especial. Como não tens nenhum apóstolo como protetor, Eu te dou este, que será teu fidelíssimo patrono, junto a mim, nos Céus.
Ela replicou:
– Ensinai-me, amantíssimo Senhor, que homenagens posso lhe prestar?
– Qualquer um poderá dizer diariamente um Padre Nosso em honra desse apóstolo, para lhe recordar os sentimentos de doce fidelidade que brotaram de seu coração quando lhe ensinei esta oração. Pedir, também, que lhe obtenha a graça de perseverar em meu amor até o fim da vida.
Na festa do mesmo apóstolo, quando ela assistia às Matinas com mais devoção, o discípulo que Jesus amava tão ternamente e que, por isso, deve ser amado por todos, lhe apareceu cumulando-a de sinais de amizade. Ela lhe recomendou então diversos membros do mosteiro que se tinham confiado a ela e o santo recebeu com benevolência os pedidos de todos, dizendo:
– Pareço-me com meu Senhor. Amo aos que me amam.
Gertrudes lhe disse:
– E que graça eu, tão pobrezinha, poderei obter em vossa dulcíssima festa?
– Vem comigo, és a eleita de meu Deus. Descansemos juntos em seu seio, onde se ocultam os tesouros de toda a santidade.
E tomando-a consigo, conduziu-a à doce presença do Senhor nosso Redentor, colocou-a à direita e se colocou à esquerda. Enquanto os dois repousavam assim docemente no peito do Senhor, o bem-aventurado João tocou-o com o dedo, com respeitosa ternura, dizendo:
– Eis o Santo dos santos, que atrai a si todo o bem do Céu e da terra.
Então ela lhe perguntou por que escolhera o lado esquerdo do Senhor e a tinha colocado à direita. Ele respondeu:
– Dado que venci todas as coisas e me tornei um mesmo espírito com Deus, posso penetrar sutilmente onde a carne não pode atingir. Eis porque escolhi o lado fechado. Porém, coloquei-te junto à abertura do Coração divino porque, vivendo ainda na terra, não poderás como eu penetrar no que está oculto. Enquanto que aí, te será fácil haurir a doçura e a consolação que a força do divino Amor derrama, sem cessar, em todos que os desejam. Como ela sentisse
inefável gozo escutando bater o Coração sagrado do Salvador, disse ao bem-aventurado João:
– Ó bem-amado de Deus, sinto agora tão grandes delícias escutando as palpitações desse divino Coração. – Não tivestes sensações semelhantes quando repousáveis, na Santa Ceia, no peito do Senhor?
– Em verdade, eu as senti e as senti profundamente e sua suavidade penetrou em mim como o hidromel perfumado impregna com sua doçura um bocado de pão fresco. Ademais, minha alma por isso tornou-se tão ardente quanto poderia ficar um vaso posto sobre fogo violento.
Ela retorquiu:
– Por que então guardastes sobre isso silêncio tão absoluto e nada escrevestes a respeito para proveito de nossas almas?
– Minha missão era de manifestar à nova Igreja com uma só palavra o Verbo incriado de Deus Pai. E essa única palavra pode servir até o fim do mundo para satisfazer a inteligência de toda a raça humana, ainda que ninguém jamais consiga compreendê-la plenamente. A doce eloquência das batidas do Coração Sagrado está reservada para os últimos tempos, a fim de que o mundo envelhecido e entorpecido se reaqueça no amor de seu Deus.
Enquanto ela admirava a beleza de São João que lhe havia aparecido repousando sobre o peito do Senhor, o santo apóstolo lhe disse:
Até hoje, tenho-me mostrado a ti, na forma que tive sobre a terra, quando repousava no seio do Senhor, meu amigo e único bem-amado.
Mas, se o desejares, conseguirei que me vejas tal como sou presentemente, onde desfruto, no Céu, das delícias da divindade.
Gertrudes desejou gozar este favor. Imediatamente, viu o oceano sem limites da divindade encerrado no seio de Jesus, e nesse oceano, o bem-aventurado João, semelhante a uma abelha, nadava como um pequeno peixe, com liberdade e delícias inefáveis. Notou também que ele se conservava habitualmente no lugar em que a corrente da divindade se conduz com mais eficácia para os homens. O apóstolo bem-amado, penetrado dessas torrentes de delícias, parecia projetar de seu coração uma espécie de canal, do qual fluíam em abundância, para toda a superfície do mundo, as gotas da suavidade divina: eram os ensinamentos de sua
doutrina de salvação e particularmente do Evangelho, In principio erat Verbum.
Outra vez ainda, na mesma festa, ela encontrava grande deleite e se deliciava com frequência ao ouvir celebrar por palavras mais doces que o néctar, a integridade da virgindade de São João. Voltou-se enfim para esse insigne amigo de Deus e lhe suplicou que, por suas orações, obtivesse para nós o dom de guardar tão fielmente a castidade que, na medida de nossas forças, pudéssemos associar-nos, na vida eterna, aos louvores à glória de Deus que, com tanta doçura, ele mesmo faz ouvir. Recebeu esta resposta:
– Quem quiser participar comigo do preço da vitória, na bem-aventurança eterna, deve, durante sua vida, seguir um caminho semelhante. Acrescentou: em minha existência, lembrava-me constantemente da terna familiaridade com que meu amabilíssimo Mestre e Senhor Jesus lançou sobre mim seu olhar e como ele recompensou essa castidade que me fez abandonar uma esposa e deixar as núpcias para segui-lo. Depois, em minhas palavras e ações, tive o maior cuidado em não ofender essa virtude que tanto agrada a meu Mestre, nem em mim
nem em outros. Os outros apóstolos contentavam-se com evitar tudo quanto poderia ser suspeito e agiam com mais liberdade em tudo que não o era: Erant cum mulieribus et Maria Matre Jesu, dizemos Atos dos Apóstolos!?. Por minha vez, conduzia-me com tal circunspecção que, sem recusar socorrer às necessidades corporais ou espirituais de uma mulher, todavia nunca deixei de me cercar de precauções. Tinha o costume, cada vez que se me apresentava ocasião de prestar algum serviço, de invocar a divina bondade. Eis porque se canta de mim: In tribulatione invocasti me et exaudivi te , pois o Senhor jamais permitiu que amizade ferisse a pureza de alguém. Para recompensar essa castidade, meu
bem-amado Mestre permitiu que essa virtude fosse louvada em mim mais do que
em qualquer outro santo e me deu no Céu um lugar de especial dignidade, onde, sentado no meio de uma glória e de um esplendor brilhante, recebo mais diretamente e com inebriante volúpia a irradiação desse amor que é o espelho sem mancha e o esplendor da luz eterna. Cada vez que na Igreja se menciona minha castidade, o Senhor que me ama me saúda com um gesto cheio de amor e de ternura e cobre meu coração com uma alegria inefável. Essa alegria, como doce licor, penetra as partes mais íntimas de minha alma.
É por isso que se canta em meu louvor: Pôr-te-ei como um selo em minha presença 20, isto é, como o receptáculo que deve receber as emissões do meu mais ardente e suave amor.
Gertrudes, elevada em seguida a um conhecimento de ordem mais elevada, compreendeu que segundo essas palavras do Senhor, Na casa de meu Pai há muitas moradas21, existiam mais especialmente três moradias em que os que guardam a integridade da pureza virginal gozam a bem-aventurança. A primeira é para os que, como se disse dos apóstolos, fogem do que é suspeito e acolhem razoavelmente o que não o é. Se alguma tentação assalta sua alma, dela triunfam em luta generosa.Se eles sucumbem devido à fraqueza humana, sua falta é logo
apagada pela penitência.
A segunda habitação é para os que, em toda a ocasião suspeita ou insuspeita, fogem absolutamente de tudo quanto lhes poderia ser motivo de tentação. Castigam sua carne e a reduzem à escravidão, a ponto de ela mal poder resistir ao espírito. Nessa segunda moradia parecem estar São João Batista e alguns outros santos. De um lado, a bondade de Deus os santificou gratuitamente e, de outro, cooperaram ativamente com a graça, fugindo do mal e praticando o bem.
A terceira habitação é dada aos que, movidos pela doçura da bênção divina, parecem ter horror natural ao mal. Entretanto, quando as circunstâncias os põem
em relação com os bons ou com os maus, conservam com firmeza a mesma repugnância pelo mal e a mesma afeição pelo bem e trabalham para
conservar sem mancha sua alma e a dos outros. Contudo, esses homens conhecem a fraqueza da natureza, mas dela tiram proveito quando, no exercício dos deveres de caridade, encontram aí ocasião de humilhar-se e se esforçam em vigiar mais a si mesmos segundo essas palavras de São Gregório22: E próprio das almas virtuosas, temer uma falta onde ela não existe. Entre estes, São João
Evangelista tem a primazia. Eis porque se canta em sua festa, Aquele que será vencedor23, isto é, que será vencedor da afeição humana; farei dele uma coluna
do meu templo, isto é, será a base muito firme que suportará a abundância das delícias divinas; e Escreverei meu nome sobre ele; manifestarei que o marquei com a doçura de minha familiaridade. E o nome da cidade, a nova Jerusalém, quer dizer, ele receberá interior e exteriormente uma recompensa especial por todas as pessoas por cuja salvação ele tenha trabalhado, sobre a terra.
A isto se aplica outra visão que ela teve mais tarde.
Ela se perguntava por que motivo se exaltava tanto a
virgindade de São João Evangelista a ponto de se dizer que o Senhor o chamara a si no próprio momento de suas núpcias, enquanto São João Batista
que jamais conhecera algum desejo terrestre era porém menos louvado nessa virtude. O Senhor que penetra os pensamentos e distribui os dons lhe mostrou esses dois santos na seguinte visão. São João Batista parecia assentado em um trono muito alto, posto acima de um mar deserto, enquanto que o Evangelista estava em pé, no centro de uma fornalha tão ardente que as chamas o envolviam de todos os lados. Gertrudes olhava e admirava esse espetáculo, quando o Senhor se dignou lhe dar a explicação.
-Que achas de mais admirável: que João Evangelista não se abrase ou que João Batista não seja submerso?
Ela compreendeu então que a recompensa é muito diversa segundo se a virtude é fruto de árduo combate ou é tranquilamente conservada na paz.
Uma noite em que ela rezava e se esforçava com especial devoção para aproximar-se do Senhor, viu o bem-aventurado João apoiado em seu Mestre. Ele o tinha estreitamente abraçado e lhe dava mil provas de ternura. Então, Gertrudes se prosternou humildemente aos pés do Senhor, a fim de obter o perdão de suas faltas. João lhe disse, bondosamente:
– Que minha presença não te afaste. Eis o pescoço que acolhe os abraços de milhares de almas amorosas, a boca que oferece tantos encantos a seus ósculos, os ouvidos que guardam fielmente os segredos que lhe foram confiados.
Durante o ofício de Matinas, enquanto se cantava:
Mulher, eis o teu filho 24, ela viu saltar do Coração de Deus um esplendor maravilhoso que se dirigia para o bem-aventurado João, atraindo também para ele os olhares e a respeitosa admiração de todos os santos.
A Virgem Bem-aventurada, ouvindo-se chamar Mãe desse discípulo bem-amado,
testemunhou-lhe com alegria toda a sua ternura e, por sua vez, o discípulo a saudou com sinais de especial amor. Quando se falava, no ofício, dos privilégios especiais com que São João foi honrado, tais como, este é o João que repousou no peito do Senhor durante a Santa Ceia; é o discípulo que foi digno de conhecer os segredos do Céu; é o discipulo que Jesus amava, etc., o santo apóstolo parecia revestido de uma nova glória aos olhos de todos os santos. Estes então louvavam a Deus com mais ardor, a fim de glorificar o discípulo dileto que sentira tão inefáveis delícias.
Diante das palavras apareceu a João a quem amava”, ela compreendeu que, nessa visita, feita ao bem-aventurado João, o Senhor lhe renovou as doces e familiares ternuras que o apóstolo experimentara durante sua vida. O ditoso apóstolo foi então como que transformado em outro homem e pareceu gozar já as delícias do eterno banquete, principalmente por três favores, pelos quais deu graças a Deus na hora de sua morte. Exprimiu o primeiro, com estas palavras:
– Vi vossa face e pareceu-me que sai do sepulcro. Do segundo disse:
Vossos perfumes, ó Senhor, excitaram em mim o desejo dos bens eternos. Enfim, do terceiro:
– Vossa voz, cheia de doçura comparável ao mel, etc.
A doce presença do Senhor lhe conferira, por assim dizer, a alegria da mortalidade. Pela virtude do apelo divino, recebera a esperança das mais ternas consolações. Finalmente, a meiguice das palavras divinas o fizera sentir a alegria das supremas delícias.
Às palavras João levantou-se ao chamado do Senhor e pôs-se a caminhar como se quisesse seguir seu Mestre ao Céu, ela compreendeu que o bem-aventurado João tinha confiança segura na bondade do Senhor e acreditava que o divino Mestre o levaria deste mundo, sem fazê-lo sentir as dores da morte. Isso porque o amor que lhe inspirou essa audácia lhe mereceu ver sua realização. Gertrudes, então, admirou-se de ver escrito que João foi levado para o outro mundo sem passar pela morte por sofrer na alma, ao pé da cruz, a Paixão de seu Mestre e porque guardara intacta sua virgindade. Como poderia ela compreender que esse favor recompensara a confiança de João? O Senhor respondeu:
– Recompensei por uma glória especial a integridade virginal de João e sua compaixão diante de minhas dores e minha morte. Mas, agradou-me reconhecer, em sua vida, a confiança firme que o levava a crer que minha bondade infinita nada lhe podia recusar. Assim, retirei-o triunfalmente de seu corpo sem que sentisse as dores da morte e glorifiquei de maneira especial esse corpo virginal, dando-lhe a incorruptibilidade e uma espécie de glorificação…”