Francisca Chambon nasceu numa modesta, mas cristã família de agricultores, no lugarejo Croix-Rouge, perto de Chambéry, a 6 de Março de 1840. No mesmo dia recebeu o Santo Baptismo na igreja paroquial de S. Pedro de Lémenc.
Foi do agrado de Nosso Senhor revelar-se desde muito cedo a esta alma inocente. Com nove anos de idade, tendo ido com a tia, numa Sexta-feira Santa, à adoração da Cruz, Cristo surgiu diante dos seus olhos, ferido, ensangüentado, como no Calvário. «Oh! Em que estado Ele estava!…», dirá ela mais tarde.
Esta foi a primeira revelação da Paixão do Salvador, que viria a ter um lugar primordial na sua existência. Mas a aurora da sua vida surge-nos, sobretudo, favorecida pelas visitas do Menino Jesus.
No dia da sua primeira comunhão, veia a ela visivelmente; e, desde então, até a morte, em cada uma das suas comunhões será sempre o Menino Jesus que ela verá na Sagrada Hóstia. Ele torna-se o Companheiro inseparável da sua juventude, segue-a ao trabalho, pelos campos, conversa com ela ao longo do caminho, volta com ela para a cabana paterna: «Nós estávamos sempre juntos… oh, como eu era feliz! Tinha o Paraíso no coração!…», dizia ela lembrando, no final da vida, essas longínquas e doces recordações.
Na época desses favores precoces, Francisca nem sequer sonhava fazer quaisquer confidencias sobre a sua vida de familiaridade com Jesus; contentava-se em saboreá-la, julgando ingenuamente que toda a gente possuía o mesmo privilégio.
Contudo, a pureza e o fervor desta menina não podiam passar despercebidos ao Prior da paróquia; por isso, admitia-a muitas vezes à Mesa da Comunhão, e foi ele que descobriu nela a vocação religiosa e que a veio apresentar ao nosso Mosteiro.
PRIMEIROS ANOS DE RELIGIÃO
Quando a Visitação Santa Maria de Chambéry lhe abriu as portas, Francisca Chambon tinha vinte e um anos. Dois anos mais tarde, na festa de Nossa Senhora dos Anjos, em 2 de Agosto de 1864, pronunciava os santos votos e tomava lugar definitivamente – com o nome de Irmã Maria Marta – entre as Religiosas do véu branco.
Nada no seu exterior predispunha em favor da nova esposa de Jesus Cristo. A beleza da filha do Rei era verdadeiramente toda interior… Deus que, sem dúvida, se reservava outras compensações, quanto aos dons naturais tinha tratado a Irmã Maria Marta com uma real parcimônia! Maneiras e linguagem rústicas; uma inteligência medíocre, que nenhuma cultura, mesmo sumária, tinha vindo desenvolver: A Irmã Maria Marta não sabia ler nem escrever[2]; sentimentos que só por influência divina se elevaram; um temperamento vivo e um pouco teimoso; as Irmãs declaram-no, sorrindo: «Oh! Para uma santa, era uma verdadeira santa! Mas uma santa por vezes teimosa!»
A «santa» sabia-o bem! E, na sua comovedora ingenuidade, queixava-se a Jesus por ter tantos defeitos. «As tuas imperfeições, respondia-lhe Ele, são a maior prova de que tudo o que se passa em ti vem de Deus. Nunca tas tirarei; elas são a capa que esconde os meus dons. Tens desejo de te esconder? Eu ainda o tenho mais que tu!…»
Diante deste retrato, dever-se-á colocar outro, de linhas atraentes. Debaixo do tosco bloco exterior a observação mais atenta das Superioras não tardou, de fato, a adivinhar, e depois a reconhecer, uma fisionomia moral muito bela já, e que todos os dias se embelezava mais sob a acção do Espírito de Jesus. Notavam-se os sinais infalíveis que revelam o divino Artista… em contraste com os desfavores da natureza, que não desapareceram: nesta inteligência tão apagada, que luzes, que visões tão profundas! Neste coração sem cultura natural, que inocência, que fé, que piedade, que humildade, que sede de sacrifício! Bastará, por agora, recordar o testemunho da sua Superiora, a Revª. Madre Teresa Eugênia Revel: «A obediência é tudo para ela. A candura, a retidão, o espírito de caridade que a animam, a sua mortificação e, acima de tudo, a sua humildade sincera e profunda, parecem-nos as garantias mais segura da conduta de Deus com esta alma. Quanto mais ela recebe, mais ela entra num verdadeiro desprezo de si própria, sendo quase habitualmente esmagada pelo medo de estar na ilusão. Dócil aos conselhos que lhe são dados, as palavras do Padre e da Superiora têm grande poder para lhe restituir a paz… O que sobretudo nos tranqüiliza é o seu amor apaixonado à vida oculta; a sua imperiosa necessidade de escapar a todo o olhar humano, e o pavor que tem de que alguém se aperceba do que se passa nela.»
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Os dois primeiros anos de vida religiosa da nossa Irmã desenrolam-se normalmente. À parte um dom de oração pouco comum, um recolhimento contínuo, uma fome e sede de Deus sempre crescente, não havia nada verdadeiramente especial e que fizesse prever coisas extraordinárias.
Mas, em Setembro de 1866, a jovem Coadjutora começa a ser favorecida com freqüentes visitas de Nosso Senhor, da Santíssima Virgem, das Almas do Purgatório, dos Espíritos bem-aventurados.
Jesus Crucificado, sobretudo, oferece-lhe quase todos os dias a contemplação das Suas Chagas divinas, umas vezes resplandecentes e gloriosas, outras vezes lívidas ou ensangüentadas, pedindo-lhe para se associar às dores da Sua Santa Paixão.
VIGÍLIAS E PENITENCIAS CORPORAIS
As Superioras, inclinando-se diante dos sinais evidentes da Vontade do Céu – sinais sobre os quais não nos podemos alongar nesta curta exposição – decidem-se, a pouco e pouco, apesar das suas apreensões, a deixá-la entregue às exigências deste Jesus Crucificado.
A Irmã Maria Marta vê-se, primeiro, convidada a passar as noites estendias no chão da cela. Depois recebe a ordem de levar, dia e noite, um rude cilício. Em breve, tem que tecer para si mesma uma coroa de espinhos agudos, que não lhe permitem mais repousar a cabeça sem sentir um vivo sofrimento.
Ao fim de oito meses, em Maio de 1867, não contente com as noites passadas no chão, com o cilício e a coroa de espinhos, Jesus exige da Irmã Maria Marta o sacrifício do seu próprio sono, pedindo-lhe para velar, sozinha, enquanto toda a gente dorme no Mosteiro, junto do Santíssimo Sacramento.
Com tais exigências, a natureza não encontra nenhuma satisfação. Mas, não é este o preço habitual dos favores divinos?… No silêncio das noites; Nosso Senhor comunica-se à Sua serva da forma mais maravilhosa. Muitas vezes, sem dúvida, deixa-a lutar, com dificuldade durante longas horas, contra a fadiga e o sono. Mas, a maior parte das vezes, apodera-se imediatamente dela e leva-a numa espécie de êxtase. Confia-lhe os Seus desgostos e os Seus segredos de amor, enche-a de carícias, tira-lhe o coração para o mergulhar no Seu. Estas influências nesta alma humilde, simples e dócil, aumentam de dia para dia.
TRÊS DIAS DE GRAÇAS EXCEPCIONAIS
Três dias do mês de Setembro, de 1867, os dias 26, 27 e 28 foram, para a querida vidente, três dias de graças excepcionais…
Todo o esplendor do Céu veio iluminar a sua humilde cela, onde desceu a Santíssima Trindade. Deus Pai, apresentando-lhe Jesus, numa Hóstia, disse-lhe: «Dou-te Aquele que tu Me ofereces tantas vezes», e deu-lhe a comunhão. Depois revelou-lhe os mistérios de Belém e da Cruz, iluminando a sua alma com vivas luzes sobre a Incarnação e a Redenção.
Tirando, em seguida, de Si mesmo, o Seu Espírito, como um raio de fogo, deu-lho, afirmando: «Aí dentro há a luz, o sofrimento e o amor!… O amor será para Mim; a luz, para descobrir a minha Vontade; enfim, o sofrimento, para sofreres de momento a momento, como quero que sofras.»
No último dia, convidando-a a contemplar, num raio deslumbrante de luz, a Cruz de Seu Filho, o Pai Celeste «fez-lhe compreender melhor as Chagas de Jesus, para o seu próprio bem». Ao mesmo tempo, noutro raio que partia a terra e chegava ao Céu, ela viu como que um apelo a fazer valer os méritos das Chagas de Jesus em proveito do mundo inteiro.
JUIZO DOS SUPERIORES ECELSIÁSTICOS
A Superiora e a diretora duma alma assim tão privilegiada não podiam tomar sobre si mesmas a responsabilidade desta via extraordinária…
Consultaram os Superiores eclesiásticos, nomeadamente: o Cônego Mercier, Vigário-Geral e Superior da Casa, sacerdote de grande bom senso e piedade; o padre Ambroise, Provincial dos Capuchinhos da Sabóia, homem de alto valor moral e doutrinal; o Cônego Boubier, apelidado «O Anjo dos Montes», Capelão da Comunidade, cuja reputação de ciência e de santidade ultrapassava os próprios limites da nossa Província.
O exame foi sério e completo. Os três examinadores concordaram em afirmar que estes fatos se deviam manter debaixo do véu do segredo, até que «fosse do agrado de Deus revelá-los Ele próprio».
Esta é a razão pela qual a Comunidade se manteve sem saber nada acerca das graças insignes com que era favorecida num dos seus membros – o menos apto, segundo o sentir humano -, para as receber.
Eis também porque, considerando o conselho dos Superiores eclesiásticos como uma ordem sagrada, a nossa Madre Teresa Eugénia Revel se pôs a relatar, dia após dia, com uma exatidão escrupulosa – indo até ao respeito de certas faltas, fruto da ignorância ou da falta de memória – as descrições da humilde Coadjutora, a quem, aliás, Nosso Senhor dava ordem de nada esconder à sua Superiora.
«Depomos aqui, na Presença de Deus e dos nossos Santos Fundadores, por obediência e o mais exatamente possível, o que acreditamos ser-nos enviado do Céu por uma amorosa predileção do divino Coração de Jesus, para felicidade da nossa Comunidade e para bem das almas.
Deus parece ter escolhido na nossa humilde família a alma privilegiada que deve renovar no nosso século a devoção as Santas Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo. É a nossa humilde Irmãzinha coadjutora, Irmã Maria Marta Chambon, que o Salvador gratificou com a Sua Presença sensível. Mostra-lhe todos os dias as Suas Chagas divinas, a fim de que ela faça valer constantemente os Seus méritos, pelas necessidades da Santa Igreja, pela conversão dos pecadores, pelas necessidades do nosso Instituto – e sobretudo para alívio das Almas do Purgatório.
Jesus faz dela o seu brinquedo de amor e a vitima do Seu agrado… e nós, cheias de reconhecimento, sentimos a cada instante a eficácia das suas orações junto do Coração de Deus.»
Esta é a declaração com que se abre o relado da nossa Revª. Madre Teresa Eugênia Revel, digna confidente dos favores do Alto. É dessas notas que são extraídas todas as citações que se vão seguir.
[1] Não se trata aqui duma Vida completa da Irmã Maria Martha Chambon, mas apenas de algumas indicações biográficas que enquadram uma exposição da sua devoção preferida: a devoção às Santas Chagas.
[2] Importa não perder nunca de vista esta completa ignorância da Irmã Maria Marta: por um lado, fica-se maravilhado por encontrar tanta «exactidão doutrinal e certeza de expressão» numa pessoa tão pouco cultivada; por outro lado, facilmente se desculpará o que pode deixar a desejar em «certos pormenores que não dizem respeito à substancia das coisas». (Apreciação do Ver. Padre Mazoyer, S.J.).